Sobre como cantar e dançar na chuva

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Nídia | Martinópolis SP
Um a um os instrumentos iam sendo dispostos para o grande concerto. Minha mãe sabia como fazer as coisas. Desde muito cedo aprendi com ela a escutar a melodia, a sentir a poesia em cada elemento, e o principal: a não ter medo... A sonoridade daqueles eventos me envolvia de tal modo que em alguns momentos parecia que meus pés tocavam as nuvens. A cada nota executada eu vibrava. Era como se o mundo todo pausasse, em contemplação, sob o efeito de um flash. Ah, como era gostoso pegar no sono ouvindo aqueles sons! Os trovões retumbantes, o vento-violino, o compasso harmônico dos primeiros pingos tamborilando nas superfícies metálicas das latas e bacias propositalmente armadas sob o beiral da casa... Ainda não inventaram canção mais doce.

Absorta, entre as tantas lembranças de minha infância, nem mesmo vi o tempo passando. Mas eu não poderia descortinar minhas memórias, tampouco falar de música, sem dizer do quão fascinante me era penetrar nesse misterioso universo por trás da chuva. Confesso até que não poderia fazer fluir estas linhas sem que se infiltrassem ao doce das palavras também algumas notas lacrimais.

Eu esperava pela minha vez de ser chamada, quando um som distinto que vinha da tevê me arrebatou. Era uma campanha de uma marca de fraldas, onde, ao som de “Cantando na Chuva”, figuravam umas figurinhas fofas de bebês dançando e saltitando em pocinhas d’água. Embora já conhecesse aquela composição, passei a aprecia-la, ligando-a ao mesmo motivo daquela minha espera – no meu ventre, havia outra espera...

Ela chegou, oportunamente, em meados de agosto. Finalmente, eu estava plena. Tudo em minha volta explodia em cores, o que reforçava ainda mais minha crença na vida. A maternidade me abriu a uma porção de novas experiências, especialmente com os sons. Logo nos primeiros dias aprendi a decifrar a sinfonia do choro, do agudo ao estridente. Também aprendi o quão eficaz era um simples “Boi da Cara Preta” contra à falta de sono. O melhor de tudo, ao me tornar mãe, foi a certeza imutável de estar também num colo, tão quente e aconchegante quanto ao da minha mãe naquelas noites de chuva.

Meu pequeno raio de sol cresceu cercado de afeto e cuidado, até que um dia veio uma grande tormenta em nossas vidas e ela se foi. Hoje, sempre que me lembro daquela campanha de fraldas, lamento. Pelo que ainda não inventaram algo com real poder de enxugar prantos, além de bumbuns de bebês. Sobre a chuva que agora cai, é pesada e fria. Seu papel já não é mais embalar meu sono. Nem mesmo sei dizer se ainda posso sonhar. Às vezes, meu único desejo é dormir...

É estranho viver como se o céu se fechasse de repente num inverno perene e molhado. As cores deram lugar a um cinza inexorável. A aragem já não vem mais morna com o anúncio das águas. E a paisagem, não obstante saciada, não carrega mais o mesmo viço. Onde antes em mim manava a inspiração, jazem apenas seixos. A rotina se tornou enjoativa. Os dias, opacos. Dentro das horas, lentas e degradantes, o próprio tempo se ocupou em plantar labirintos. Sinto-me perdida, definhando... Desafinando em Dó minha dor maior.

P.S.: Sabendo que nada dura para sempre, nem mesmo a fria chuva de novembro (como já dizia Guns N’ Roses, em November Rain), um dia ainda vou aprender... Vou me levantar. E vou cantar e dançar na chuva. Igual ao Gene Kelly.

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