O ratinho na janela e a história da Síria

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Verona | Holambra SP
Um ratinho na janela conta melhor do que os jornais a história trágica de uma ou mais famílias da Síria. Ainda em alerta pelo barulho e gritaria, ele descobriu que sua vida tinha se transformado em um pacífico conjunto de dias, sem receio de ser enxotado violentamente para fora das casas, ou então, ser morto pela enferrujada armadilha preparada engenhosamente pelo dono da casa, pelo mesmo homem que carregava armas e que era capaz de fazer um prédio inteiro implodir em segundos, com os moradores ainda dentro.

A semelhança entre os medos dos homens e o medo do ratinho na janela não eram iguais na Síria. Enquanto um temia ser enxotado para fora da casa e ficar sem o conforto de umas migalhas caídas da mesa de jantar, o homem temia não ser expulso aos gritos de sua casa, gritos que alertam sobre outro bombardeio. A guerra permanecia mantendo a ordem natural do mundo e não era somente na Síria que havia falta de semelhança entre as vidas dos homens e do ratinho da janela. Muitos outros ratinhos, em janelas de outros lugares do mundo e em outras épocas viam a não semelhança entre o medo humano e o medo animal.

Mas, manter essa ordem culminou no abandono das armadilhas engenhosas para a captura do ratinho na janela. Ele não mais sofria ameaças constantes, a armadilha agora era para outros, maiores do que ele, animais mais engenhosos que matavam outros animais do mesmo tamanho, usando armadilhas para vidas humanas. E foi na janela, bem da janela, que o ratinho via tudo mudar e não mais sentia medo em ser morto pela armadilha. Ele notava a poeira cinza que pairava no céu de sua rua, vinda do chão, dos escombros de blocos cinzas e dos tijolos das casas dos homens e de seus respectivos ratinhos.

Outra grande mudança foi a quantidade de migalhas espalhadas pelo chão. Eram agora migalhas salgadas e úmidas, nada que sustentasse barriga de rato. O ratinho na janela descobriu mais tarde que os humanos chamavam de lágrima aquela coisa úmida e salgada. Eram lágrimas humanas. O ratinho ficou curioso para saber qual animal conseguiria se satisfazer com tanta água úmida e salgada, mas o ratinho desconhecia por completo a raça humana, ele não sabia que muitos homens adoravam saber que conseguiam fazer seus semelhantes derrubarem água salgada de seus olhos.

E da falta de migalhas, o rato cogitou em abandonar seu lar e mudar para outro lugar onde teria migalhas que alimentariam seu corpo, trazendo alívio a fome que sentia. E quando decidia se mudar, ele corria freneticamente entre os escombros dos tijolos e blocos que estavam espalhados pelas ruas, ruas que eram sujas e que fediam. Não era o ratinho um animal sujo? Não, com certeza ele vivia entre outros mais sujos e que deixavam cair como pingos de água corrente, um líquido vermelho e denso entre as calçadas, ruas e escombros. Alguns tinham aquela sujeira no corpo, enquanto corriam das ratoeiras voadoras, máquinas enormes que ficavam indo e voltando no céu e que eram fortes, perigosas e mortíferas como eram as armadilhas para o ratinho.

Eram armadilhas enormes, podiam destruir muitos homens de uma só vez e sem pensar em quantos segundos restariam de vida humana, o ratinho ouvia mais gritos de socorro e lamentações tão agudas que pensou que perderia os sentidos em meio a tanta gritaria. O ratinho não entendia de geografia, política ou história, mas começou a entender que habitava em meio ao perigoso animal humano e que a preocupação em aniquilar os ratinhos da janela era passado. No agora, o ratinho percebeu, a armadilha era humana e o predador também.

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