Serena

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Tatoo | Brasília DF
Buscávamos a cereja do bolo para nossas vidas. Havíamos superado intempéries ao longo do caminho e, agora, faltava apenas o toque especial: “a cereja de nosso bolo”. Escolhas pretéritas nos impediam a geração biológica de uma criança e optamos pela adoção.

Ainda que a aspiração de sermos pai e mãe adicionasse ansiedade ao desejo de termos nos braços a criança idealizada, a estrada à frente deveria ser trilhada imaculadamente. O percurso iniciou na Vara da Infância, por meio de curso preparatório a pessoas com interesse em adotar, seguido de entrevistas com psicólogos e assistentes sociais.

Chancelados pela Justiça, partimos, cheios de expectativas, rumo à cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Lá, revimos uma grande amiga, que nos acolheu, ofertando-nos um porto seguro, para onde retornávamos ao final de cada dia.

As incursões por Salvador se destinavam a instituições que abrigavam crianças disponíveis à adoção. Em cada uma experimentávamos densa atmosfera; mais angústia que prazer. Condoíamo-nos das histórias de vida de cada uma daquelas crianças, mas certos estávamos de que a adoção não se ancoraria em compaixão, mas na química, uma mágica, que cedo ou tarde, ocorreria.

Na segunda semana, depois de inúmeras idas e vindas, finalmente a luz, vinda de uma pequena instituição, com apenas nove crianças. Dramas distintos, tendo em comum o desfecho de estarem ali, naquela casa aprazível, cercadas de carinho e desvelo de pessoas que se doam em prol de um mundo melhor, mesmo que apenas em um pedacinho do Planeta.

A “cereja” estava ali, diante de nós. Amor instantâneo não correspondido. Naquele triângulo amoroso uma das retas não encontrava as duas outras. Seu nome: Serena, que em nada refletia a curta vida daquele pequeno ser.

Serena nos conduziu a um incrível turbilhão de sensações, um remoinho a nos arrastar para seu interior, fragilizando-nos, desarmando-nos, erodindo nossas defesas, envenenando-nos com sua ingenuidade e medo de nova decepção, pois já havia se submetido a um frustrado processo de adoção.

As visitas a quaisquer outras instituições haviam findado. Qual bússola, Serena apontava nosso norte. A cada amanhecer, o nascer do sol se completava quando a encontrávamos. Lentamente, comendo pelas beiradas, as muralhas de resistência de Serena ruíram: sorrisos tímidos brotavam-lhe, em harmonia com o olhar, que demonstrava alegria dissimulada quando chegávamos àquele lar provisório.

Miramo-nos no espelho e percebemos refletidas, todas as características de um pai e de uma mãe que intentávamos nos tornar. Com tais vestimentas nos encaminhamos para a comemoração dos dois anos de vida daquela criança. Certamente, a primeira de muitas celebrações futuras.

Hoje, ao rever as fotos da época, é inescapável sentir reverberações de um amor sem fim como o tempo. Serena em nossos braços, olhos de jabuticaba e um belo sorriso; talvez o dia mais feliz de sua vida até então.

Ato contínuo, uma confluência de sentimentos germina, cresce, floresce e frutifica. Sabor amargo. Serena não pôde fazer parte de nossas vidas. Todo o mar de afeto que, de início nos uniu, pouco depois, nos levou ao naufrágio. Eis que surgiu um sólido e inexpugnável dique a impedir o fluxo daquelas águas. Forte e grandioso demais a nos subjugar.

A mãe biológica de Serena, qual fênix, ressurgiu das cinzas. De início, personagem coadjuvante, mulher sofrida, catadora de lixo, de quem o Estado retirara Serena, dado o risco social a que se expunha. Em questão de dias, essa pessoa se agigantou, virou protagonista em uma narrativa que, iludidos, achávamos nossa. O final feliz, que idealizamos foi tragado em areia movediça.

Nossa realidade, como o sol aos planetas, nos atraiu de volta à vida. Não podíamos permanecer em Salvador.

Serena é uma recordação “doceamarga”, uma lacuna que para sempre estaremos impedidos de preencher. Perguntas sem respostas; inquietações e reticências sombreiam nossas reflexões quando nela pensamos. Uma criança, cujo destino, por alguns segundos se fundiu ao nosso, formando algo uno, mas que logo depois, escorreu e evaporou qual água derramada no asfalto sob o sol escaldante.

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