O homem que acalentava as nuvens

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Zoênio Zunga | Ananindeua PA
Teria sido inverno, verão ou equinócio? Não me recordo. Também, nesse mister do tempo, nessa Amazônia em que vivo, o que é chuva embaraça-se com o sol, que transcende equinócios, e o que temos (na conta certa) são dias de muita e pouca chuva e também manhãs em que o sol faz das ruas a antessala da residência do Tinhoso.

O fato é que eu estava ali, defronte do rio, na Estação das Docas, quando ele de mim se aproximou:

“O senhor dá licença?”

Olhei-o de cima abaixo. Logo radiografei o tipo, nos meus raios-X do preconceito e pespeguei nele o carimbo: pedinte, mendigo, malandro.

Devia ter umas seis décadas e meia de idade, mas a vida lhe fora um fardo pesado. Os poucos fios de cabelo que lhe restavam no cucuruto apresentavam-se encanecidos. O rosto, de uma magreza que lhe mostrava a ossatura, era insondável. Estatura meeira, tinha aí pelos seus um metro e sessenta, se muito.

Quanto ao tempo, bom: estávamos aí pela metade da semana e atingíramos o apogeu da tarde. Era aquele período do dia em que os nativos dizem que “o sol esfria”.

“O senhor trabalha com o quê? Qual é sua ocupação?” – o homem dirigiu-me, de uma solapada, estas duas indagações.

Quase eu maldizia ter concordado que ele tomasse assento ao meu lado. Decerto devia ser um daqueles tipos chatos que abordam turistas com seu blábláblá e dá cá um cigarro.

“Sou um observador da vida”, eu respondi com um meio sorriso à Mona Lisa nos lábios.

Ele me encarou, olhando sério e disse:

“Pois eu também! Na verdade sou um Fiscal da Natureza”. Disse estas últimas palavras com uma ênfase como se quisesse ressaltar a nobreza e a importância do cargo, mas isso soou mais como uma blague aos meus ouvidos d temposme iconoclasta.

“Ora veja! Um legítimo fiscal da natureza!”, exclamei, para logo em seguida fazer uma reverência e aplaudi-lo. Ele não se fez de rogado.

“Sou mesmo! E desde tempos idos, quando minha finada mãe já flagrara esta minha vocação ao ver-me acalentando nuvens”.

A incoerência aparente do que ele dizia me atraiu, confesso. Como esses peixes de água doce, que sabem que a isca trará o anzol e que este será o fim da linha, mas acabam perseguindo-a, sequiosos.

“E o senhor pode me explicar como se acalenta nuvens?”

Nesse instante do nosso inusitado diálogo foi ele que me pôs reparo de cima para baixo.

“E o senhor, um observador da vida – enfatizou essa expressão – não tem conhecimento de tal proceder?”

Não havia sentido irônico no que ele me perguntava. Podia ver nos olhos dele que era sincero o seu espanto pelo meu desconhecimento, genuína sua admiração pela minha ignorância quanto ao ofício de acalentar nuvens.

“Alguém já me disse isso, ou eu li, o que é a mesma coisa, já que, quando eu leio, os olhos e a mente fazem das palavras dos outros as minhas, aquelas que eu pensei ter dito e ficaram retidas em um livro. Então: alguém já disse que nuvem tem jeito de tanta coisa! Algumas vezes se assemelham a um elefante; noutras a um bule de café; mais à frente a um cachorro...”.

Era um homem imaginativo, desses raros que não se apegava ao Manual Prático das Burocracias do Cotidiano e que – não duvidaria – nalgum tempo futuro poderia até levitar.

Ele voltou ao tema etéreo, quiçá eterno:

“Desde criança, acalento nuvens. Quando me sinto insone dos naufrágios destes dias, é nelas que embarco e ponho-me em sonhos

Vi que o degas, além de imaginativo, era um poeta. E ele soltou mais os panos do verbo na enseada da tarde, defronte do rio.

“Meus pais eram de Angola, também meus avós. Gente miúda que veio aqui ao Brasil ser escravizada. Puseram ferros neles. Fustigaram-nos com o relho. Mas nunca mataram neles a vontade do saber. Puseram-se gente lida, escravos de dentro como os brancos chamavam. Liam e escreviam muito bem. Meu avô, liberto, alforriado, foi ser guarda- livros de um armazém no Rio de Janeiro, depois da Lei Áurea. Acho que foi deles, dos meus pais que aqui vieram aportar nesta Santa Maria de Belém do Grão-Pará que eu herdei essa fome de mundos e saberes”.

Os olhos em alerta, farolaram um lado e outro. Depois introduziu sua magérrima mão em uma bolsa esfarrapada. De lá retirou dois livros.

“O senhor os conhece?”.

Passou-me os volumes às mãos com o cuidado de quem estende um bebê para um estranho. Eram “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, numa amarfanhada edição de bolso, e “O vendedor de passados”, de José Eduardo Agualusa. Ele quis explicar-me o teor das leituras.

“O Agualusa ganhei de um cidadão que soube-me descendente de angolanos. É uma alegoria sobre guerras de poder, egos e mistificações. O do Bradbury eu achei no Palácio dos Deputados. Para o senhor ver: eles nem das nuvens tomam conhecimento!”.

Sorri tímido para o homem. Foi bem na hora em que o sol declinava no horizonte e mergulhava no barro do dia que ia se esvaindo na baía de Guajará. Foi um átimo de tempo. Quando pus a vista no assento em que ele estava há instantes, o sujeito havia sumido.

Estendi meu olhar sobre o rio e a outra margem e fiquei a pensar no laborioso ofício de acalentar nuvens.

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