Por quem os sinos dobram

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Ana Laura A M Bukhari | Uberlândia MG
Dizem que nada se cria, tudo se copia. O título deste texto foi copiado de uma música de Raul Seixas chamada Por quem os sinos dobram. A música é muito boa, mas seu significado é um pouco obscuro. Pelo menos no começo Raul canta "nunca se vence uma guerra lutando sozinho", o que tem um pouco a ver com este texto. A canção é a primeira faixa do lado B do disco também chamado Por quem os sinos dobram, lançado em 1979.

Em 1984, o Metallica lançou a canção For whom the bell tolls, que em português poderia ser traduzido como Por quem os sinos dobram, apesar do sino em inglês (bell) estar no singular. A canção falava dos horrores de uma guerra. Em 1993, o Bee Gees lançou uma canção igualmente nomeada For whom the bell tolls. A canção é sobre desilusão amorosa.

Algumas décadas antes, em 1940, Ernest Hemingway publicou o romance For whom the bell tolls, um romance sobre a guerra civil espanhola que influenciou bastante, pelo menos, a música do Metallica.

Muito, muito antes, em 1624, um reverendo e poeta inglês chamado John Donne escreveu, na cama em que passou dias a um passo da morte, um livro chamado, adivinha, Devotions upon emergent occasions. Era uma coleção de 23 pequenas "devoções", uma para cada dia de internação, sobre seu processo de adoecimento e cura e outras questões humanas.

Na Devoção XVII, John Donne traz o trecho, originalmente:

No man is an Iland, intire of it selfe; every man is a peece of the Continent, a part of the maine; if a Clod bee washed away by the Sea, Europe is the lesse, as well as if a Promontorie were, as well as if a Mannor of thy friends or of thine owne were; any mans death diminishes me, because I am involved in Mankinde; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.

Em português, tradução livre:

"Nenhum homem é uma ilha, todo em si; todo homem é uma parte do continente, uma parte da terra; se um torrão de terra é levado pelo mar, a Europa é diminuída, tanto se fosse um promontório, como também se fosse uma casa de teus amigos ou a tua própria; a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti."

E foi daí que surgiu essa frase consagrada na cultura popular.

Do quarto de Donne, ele conseguia ouvir os sinos da igreja tocando. Isso significava que alguém que vivia ali perto havia morrido, e as pessoas se perguntavam: por quem os sinos dobram?

Em outras palavras, quem morreu?

O reverendo se perguntava se as pessoas não achavam que tivesse sido ele próprio.

***
Essa frase é de uma sabedoria imensa.

A noção de que existe um Eu e todo o não-Eu, que são todas as pessoas e animais e tudo o mais que existe que não é o Eu, é tão forte em nossa cultura que é quase difícil pensar que existe uma alternativa. Mas existe.

Somos todos parte da humanidade. Cada ser humano contribui um pouco para formar a raça humana, assim como cada torrão de terra contribuiu para formar a Europa. Se uma vida humana é perdida, todos os outros seres humanos perdem um pouco também.

Mais que isso, somos todos parte do universo. E isso é ainda mais intuitivo. O carbono que faz parte de mim um dia esteve no corpo de outras plantas e animais e em rochas e, há muito tempo, foi formado no interior de estrelas. Esse mesmo carbono passará por mim e por inúmeros outros seres vivos antes de finalmente ser engolido por outra estrela, e daí sabe-se lá para onde vai.

Dizem que todos os átomos do nosso corpo se renovam a cada sete anos. Eu não sei se é verdade, mas considerando como nossas células morrem e nascem a todo momento e como nossos tecidos se renovam e como nosso metabolismo está continuamente transformando os compostos que nos alimentam nos compostos que nos formam e transformando os compostos que nos formam nos compostos que excretamos, com certeza grande parte do que "eu" sou é a mesma matéria, a mesma exata partícula, que amanhã ou depois fará parte de você, de uma criança ou de um gato.

E considerando que meus pensamentos, sentimentos e comportamentos hoje são muito diferentes do que eram há pouco tempo, chego à conclusão de que nada que eu sou hoje tem nada a ver com o que eu era alguns anos atrás.

E, portanto, que "eu" não significa quase nada.

Eu sou atingido sempre que outro humano é atingido. Eu sofro sempre que qualquer outro ser vivo sofre. Eu morro toda vez que eu atiro.

Não limite sua compaixão. Não pergunte por quem os sinos dobram.

Eles dobram por ti.

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