O dicionário de oratório

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Athelstan | Adamantina SP
Na casa de meu avô duas coisas eram feitas antes de dormir, a primeira era acender uma vela o seu para o santo protetor e a outra consistia em também acender, mas desta vez aqueles repelentes espirais para pernilongos. Desta forma, o cheiro de vela e repelente se misturavam no decorrer das noites, com certeza não havia pernilongo que resistisse.

Tamanha era a religiosidade do vovô, que este chegava a ter dentro da sala de casa um oratório particular, onde guardava os seus santos protetores, as folhas de palmeira da Missa de Ramos, as suas fitinhas de promessas e seus ex-votos, além das velas e um maço de fósforos, é claro. O curioso é que ao lado do tal oratório também havia uma foto do ex-presidente Getúlio Vargas, que dizia ele, “ter sido muito bom para os trabalhadores”.

O mais curioso é que esta religiosidade também se dava em outros campos. O seu lugar na poltrona, por exemplo, era sagrado, assim como o ato de assistir o Jornal Nacional logo após a novela. Chegava a ser engraçado vê-lo responder ao “boa noite” do Cid Moreira e do Sérgio Chapelin, além de discutir com a “moça do tempo”, quando o clima não lhe agradava.

Vê-lo decorar o oratório, nas épocas festivas era bem interessante. No natal predominavam os animais, tendo em vista a configuração típica dos presépios, da mesma forma ocorria na quaresma e nas festas específicas de cada santo por ele cultuado.

Como todo oratório que se preze, ter um livro sagrado, como uma bíblia, era algo fundamental, e no caso do meu avô, isso também se fazia presente. No entanto, cabe ressaltar que ele nunca fora alfabetizado e sequer sabia rubricar o seu nome. Dessa forma, um livro sagrado para ele era guardado mais pelo seu sentido religioso, do que propriamente pelo que se podia fazer com ele.

Nesse sentido, uma certa tarde ele me pediu para que limpasse o tal oratório. Acabei subindo em uma cadeira e comecei a retirar os objetos, imagens, enfeites e um “dicionário”. Fiquei curioso com o achado, mas continuei. Ao retornar os objetos ao oratório, perguntei sobre o tal dicionário, mas ele sem saber o que era um dicionário, pediu para que eu o deixasse lá, acreditando que o mesmo realmente fosse uma bíblia. Fiquei quieto para não o contrariar e acabei percebendo que independente do livro, o que o movia eram os seus elos para com a sua fé.

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