O Convite

  C023  
Bié | Campinas SP
Entra ano e sai ano, não me conformo com o silêncio de nossas ruas.

Silêncio de vozes, em especial e, sobretudo, vozes de crianças... Nem de dia, nem de noite.

Silêncio interrompido pelos fiéis amigos do homem. Uivos e latidos, seu dever de ofício, coitados, ainda que confinados em espaços exíguos.

E há os lixeiros, vozes gritantes como a esquentar a garganta para exorcizar o frio.

Quando não, os alarmes que disparam.

Ausência de transeuntes, a não ser os atletas solitários. Uns, jovens esbeltos. Outros, de meia idade, abdômen avantajado. E os já bem chegados, andar moderado. Nem bom dia, boa tarde ou boa noite. Pressa de chegar...

Ainda bem que o novo vizinho tem duas crianças. Às vezes, do lado de cá do muro chamo por elas. Ou, então, tento um proseio quando as vejo no pequeno jardim da casa que mais lembra uma fortaleza.

A casa mais de cima também tem crianças. Duas.

Ausentes o dia todo, chegam bem de tardezinha das escolas, e passam o tempo em contato com o mundo virtual.

Nas demais casas, só gente adulta, todos mais de idade, como aqui em casa, que até há poucos anos era um santo sufoco, as duas netas esparramando alegria e ânimo pela casa e quintal afora.

As histórias que eu contavas, as netas a querer saber como foi minha infância, de que e com quem eu brincava.

Falava do pegador e das cantorias de roda. Boca de forno e tatu-passa-aqui. Dos cavalos de bambu, dos barcos e aviões de papel. Dos papagaios de duas cores (pipas), os rabos enormes, aquilo subindo às alturas, acima das nuvens, quem sabe até à morada de Deus...

Da fugida pelas matas, pelos pastos e pomares dos vizinhos. Dos cavalos em pelo, do nadar pelado nos corgos e no calabouço do monjolo...

“Vô, o que é monjolo?”

Foi aí que montei um no jardim, com água e tudo, e o monjolo socava que socava, para deleite das meninas, que se molhavam que só vendo, a Vó preocupada com a gripe e os resfriados.

Fiz carrinho de direção, coisa que ninguém mais conhece.

Na trazeira está escrito – ainda o conservo – “Eu era feliz e não sabia... “Mas no meu tempo, falei para as netas, eu era feliz, e sabia!!!

Dia desses, antes mesmo que elas, já crescidas – fazem o colegial – entrassem casa afora, entusiasmado, depois dos abraços e beijos, fiz o convite: “Vamos amanhã para o sítio? É feriado prolongado! Com este tempo quente o espaço da noite escura estará coalhado de vaga-lumes, daqueles bitelos! Lembram-se da farra que fazíamos?”

Já imaginando o ânimo das duas diante do meu convite, principiei, mentalmente, a organizar as traias para o grande passeio.

“Não vai dá, Vô, o computador novo já chegou. Vamos configurá-lo para entrar na internet”.

Entraram, e fui para o quarto navegar.

E como naveguei!!!

Naveguei num mar de saudade, saudade de um tempo engolido pela alta e sofisticada tecnologia.

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