Carta ao meu amigo Dr. Geraldo

  C024  
Bié | Campinas SP
Hoje aquele menino me reapareceu, me deu a mão e eu fui com ele, que me transportou no tempo e no espaço, e me fez percorrer muitos caminhos daqueles que já palmilhei... Era domingo de uma manhã de sol forte, de estalar mamona. Saimos, eu e meu pai, ali da nossa casa na rua do Quenta-Sol. Pegamos a rua da Fontinha, depois ganhamos o Morro da Tejina e alcançamos o Caminho dos Cossacos. Daí a pouco estávamos no Campo de Aviação.

Não demorou nada já nos víamos escalando o Morro do Parol, o Sol cada vez mais quente. Um tropel atrás de nós nos avisou da aproximação de um aninal de montaria, uma besta ruã, montada por um senhor já de idade, seu Delfino Simões. Logo nos viu, emparelhou-se conosco, diminuindo a marcha do animal. Após o “bom-dia!” e um dedinho de prosa, passou o guarda-sol a meu pai para me sombrear um pouco. Uma realização para mim, não pela proteção dos raios solares, mas andar de guarda-sol, feito gente grande e importante, do quilate do seu Delfino, aquele senhor a quem todos admirávamos e respeitávamos.

Não havia um domingo em que, nas nossas andanças por aqueles lados do Suassuí Pequeno, não topássemos com ele, cuja fazenda ficava por aquelas bandas, confrontante com o retiro do seu Antônio Vitor e Chico Quincas, ali no “Córrego das Almas”. Mas, reparei que nos domingos seguintes não aparecia. E o tempo se foi, se foi, nada dele...

Tempos depois, não sei dizer se algumas semanas, meses ou até um ano, pois criança não se preocupa com o tempo, ei-lo com uma venda ao lado da casa da irmã dele, D. Adélia, professora primária. Ficava bem ali na esquina da rua do Ginásio com a do seu Clarimundo, o Delegado, sim senhor. Descobri por acaso, e, meio ressabiado, fiquei a certa distância da porta, bispando o ambiente. E ele, óculos de lentes grossas, lá de dentro gritou pra eu entrar. Logo ganhei uma bala. E como fiquei de olho gordo num tabuleiro de geléia de mocotó, atraído por sua cor morena carregada, não levou nada eu já estava me deliciando com aquela maravilha, obra de D. Mathilde, a esposa. Virei freguês, e periodicamente lá estava eu fazendo a entrega de um monte de saquinhos de papel, que eu tinha a pachorra de desamarrotá-los a todos com ferro a brasa, e em troca eu ganhava uma geléia.

Era meu ponto, agora não tanto pelas geléias, mas pelo prazer de ouvi-lo contar suas histórias, aquelas ainda do seu tempo de tropeiro, que me deixavam absorto, me levavam longe, longe, e cheguei até a viajar de trem e fiquei conhecendo o mar, que em Minas não existe, por isto se diz que ela – Minas Gerais – chora, suspira e geme por não ter um mar. Mas aí um dia me contou uma história muito triste. Foi quando fiquei sabendo porque não nos encontrávamos mais pelos caminhos do Suassuí Pequeno. Só sei que foi o fato de ele ter feito uma força muito grande na lida com uma imensa tora que lhe sucedeu o inesperado, que o levou ao leito de um hospital em Belo Horizonte. Uma penúria, a me dizer da péssima e desagradável sensação de ter perdido a noção de lugar e espaço com aqueles tapumes nos olhos por muitos e muitos meses!!!

Certa feita, caixa de engraxate a tiracolo, eu passava em frente à venda, quando divisei em cima do balcão o que me parecia um sanfona. Entrei e fiquei a prestar atenção na conversa entre ele e um outro senhor interessado em comprar aquele instrumento musical, que na verdade era uma concertina. Quase fechado o negócio, alguma coisa me dizia que algo estava como que se desligando com muita dor do seu Delfino, pois que ele, na verdade, não queria se desfazer do instrumento.

Simplório e na mais pura e vera inocência, pus a claro meu pensamento, o que não agradou ao comprador, que até me passou um pito, a dizer que aquilo era conversa de gente grande. Mas seu Delfino pôs a mão em minha cabeça, e me alisando a vasta e suja cabeleira, emocionado, confessou que um “anjo” me havia enviado até ali, e que resolvera não dispor da concertina. Aí principiou por dedilhá-la e tocou uma música cuja letra falava assim: “De manhã cedo, antes do sol sair, ouvi, ouvi o cantar da juriti. Ai, ai, ai; ai, ai, ai, a madrugada que passou não volta mais...” Puxou uma cadeira para o lado de fora do balcão para que eu engraxasse sua elegante botina de pelica. Ganhei um mil réis e mais uma barra de geléia de mocotó. Nunca me esquecerei daquele dia. Nunca a indiscrição de uma criança foi tão valiosa para a felicidade de um adulto... Bons tempos... felizes dias...

Fico a assuntar: o que nos faz feliz ou infeliz são os acontecidos no decorrer de nossa vida, sobretudo na infância, cuja mente ainda ingênua e pura grava momentos que, à primeira vista, nada têm de especial, mas que se revestem de uma importância tamanha, que forjam a nossa personalidade. Não somos feitos por nós mesmos, mas por pedaços catados aqui e ali, procedentes de vivências com pessoas que nos causaram admiração ou repulsa. Felizmente no meu caso pode-se contar nos dedos, e olhe lá, as vezes em que me senti angustiado a ponto de mexer com o meu íntimo pelo resto da vida. Só coisas boas, simples, mas de grande significado.

Sei que era mês de agosto, não lembro o dia, nem o ano. Era fim ou quase fim de agosto, pois me recordo que os rapazes do ginásio estavam ensaiando para o desfile de 7 de Setembro. Via-me ali, como sempre, bisbilhotando os homens proseando na venda de seu Deflino. Um calor de rachar, o tempo abafado, cheio de fumaça, e o comentário era sobre a chuva que rareava. Daí a pouco chegou um senhor de fora, bem vestido, uma pasta na mão. Era o agente do IAPI, que viajava pelo interior a fazer o recolhimento da contribuição do dito Instituto. À sua chegada todo mundo se calou, reparando nele, que amavelmente cumprimentou a todos – mas só as gentes grandes, apertando-lhes as mãos. Eu fiquei de fora e também muito sem graça, como que repudiado pelo tal senhor.

Nisto, seu Delfino, apontando para mim, disse ao recém chegado que eu era filho de um grande amigo dele, e que me estimava muito. Foi a conta de o homem bem vestido vir em minha direção, que além de me apertar a mão, deu uns tapinhas em minha cabeça emplastada de suor. Me senti gente! Ele pediu um guaraná, e antes de ir tomando uns goles ofereceu a todos os presentes, que agradeceram muito delicadamente. Fiz o mesmo, com muito pesar. Pagou e saiu.

Daí a pouco a prosa se reiniciou, retomando o ânimo de antes. E seu Delfino ficou a me reparar. Não levou tempo foi até a prateleira, pegou um guaraná, pôs a garrafa em cima da grossa prancha do balcão, despejou num copo e me ofereceu. Peguei num tris! E ele falou “Eu sabia que você estava doidinho pra tomar um guaraná”. Por educação, muito embora eu não dispusesse do dinheiro para pagar, antes de sair eu quis saber quanto era, que depois eu acertava. “Nada não, menino! Hoje é aniversário de um de meus filhos, o Geraldo! Aí a turma deu risada, e cumprimentando o pai pelo aniversário do filho, fizeram um brinde de cachaça. “Abra mais um guaraná, é por minha conta!” – exclamou um dos presentes. “É para o menino” – completou.

Aí estão, caro Geraldo – permita-me assim o trate – alguns fiapos de uma infância bem vivida. Bem vivida porque a passei entre pessoas como seu Delfino, D. Matilde, seu Sincero – do qual guardo grandes momentos – você e o saudoso Delfino – filho – D. Alzira, seu Venâncio – para quem eu vendia vidros. E tantos e tantos outros que compõem o universo de minha existência. À partida de um deles, um pedaço se vai de mim, deixando no vácuo do meu viver gostosas e saudosas lembranças, sem as quais a vida não teria sentido. Creio que é assim com todo mundo. Com uns, menos: com outros, em maior grau.

Saudoso e carinhoso abraço a você e a todos seus familiares.

Viva o Dono da Casa! Viva! 

Viva Nossa Senhora Aparecida! 

Viva!Viva a vida, a vida bem vivida!

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