Férias escolares

  C022  
Bié | Campinas SP
Distantes e inesquecíveis dias... Principiam as férias escolares.

Por alguns dias, sopros de liberdade zunem em nossos ouvidos, agora totalmente moucos às aulas do grupo escolar, advindo também a merecida pausa para as rotineiras e cansativas sessões de catecismo, quando as piedosas catequistas persistem na tentativa de nos fazer entender um só Deus em Três Pessoas, ancião de cabelos e barbas grisalhas, olhar severo a nos vigiar os passos em todas as direções.

Depois de um dedo de prosa com os compadres e amigos da casa, e ter tomado café com quitandas, meu pai deixou-me na fazenda dos Cotas, sem antes recomendar que eu não montasse cavalo em pelo, não subisse em árvores e não me aproximasse do calabouço do monjolo.

Era o resumo de tudo aquilo que qualquer criança adorava fazer. Sem aquelas diversões a vida perdia a graça. Paciência, na certa as oportunidades surgiriam no decorrer de toda a semana em que eu iria ali permanecer.

Os compadres, sempre vigilantes, até certo ponto seguiam à risca as recomendações do meu pai. A criançada da vizinhança ia chegando, o número de primos sempre aumentando, e daí a pouco, sorrateiramente, íamo-nos distanciando da sede e embrenhávamos pelo pomar e mata afora. Tais macacos peraltas, galgávamos os pés de laranja e de manga - rosa e espada - e também os pés de jabuticaba, quando nos deliciávamos com os adocicados e negros frutos de sabor inigualável.

Passamos pelo moinho, depois pelo monjolo, e não demorou muito já nos encontrávamos na corredeira onde o pequeno e cristalino córrego despejava-se com vontade sobre a pedreira escorregadia.

Os dias para nós crianças tinham vida curta, como minutos, era o que nos parecia, insuficientes para viver todos os folguedos em sua plenitude. À noite, à beira do lume, ouvidos atentos aos causos de padrinho Januário e Tia Cota. No sisudo fogão de lenha as brasas estrepitam, labaredas multicores a lamber a bunda preta do velho e familiar tacho de cobre.

Tarde já, hora de ir para a cama, a mente embalada por um mundo povoado de inocentes e ingênuas fantasias: santos e assombrações, mulas sem cabeça e cavalos alados de três pés, funéreas figuras de tempos que vão longe...

E dos fundos da morada o cantarolar baixinho de Tia Cota, que nos embala em sono solto e profundo.

Logo no clareio do dia ela já está desperta!

Pulamos da cama, corremos ao terreiro para o xixi no rego e vamos à bica a lavar a cara na água fria, que não era tanto o que importava.

Importava era viver os gozos de correr os cavalos e montá-los em pelo, e em disparada subir os montes e descer as serras; cair tombos sobre o macio capim gordura e nos lambuzar por inteiro, emplastando a roupa e deixando o corpo pegajoso, como pegajosa a vontade de brincar e de viver...

Era só reunir dois ou mais meninos que as estripulias aconteciam. Não se ouvia choro, mas gritos alegres saídos com vontade lá de dentro da gente. "Três num!”, gritava a meninada, quando montávamos, três de uma só vez, os cavalos em pelo.

Deveras, de tanto montar em pelo formavam-se calos no rego. Dois, um ao lado do outro, bem ali no “fiu". E as calças, cujos tecidos já não eram lá essas coisas, viravam um trapo, corroídos pelo suor e pelo tanto relar nos lombos dos animais velozes e calorentos. Nadar pelado no calabouço do monjolo constituía o coroamento do fim das correrias do dia que dormitava.

Que vida boa, o Sol, a Lua, as estrelas!!! Que vida plena, vaga-lumes sem conta, inúmeros, um, dois ou três mil, luzes voadoras a povoar o espaço da noite quente, funda e negra. Que vida solta nas tardes de sol a brincar com a água amiga no calabouço e na corredeira!. Que vida livre nas grimpas como se pássaros fôssemos; ou nos bosques a imitar os bichos, e nos rios a certeza ingênua de que se é um peixe... Doce vida, vida de criança...

Infelizmente, dia de ir embora, voltar para a rua – cidade!!!

No caminho de volta, ia-me encontrando com os lenheiros, cargueiros e carreiros de regresso a casa, os animais só de cangalha, os balaios vazios e os carros de bois sem nada transportar. Por isso, os carros quase não cantavam. Por isso também se diz que "carro apertado é que canta". . Ainda também por isso é que se diz "que a alegria do carreiro é ver o carro de boi cantar".

Ora, o roceiro Manuel Rufino; ora, o lenheiro Geraldinho. Ou então Geraldo, filho do padrinho Januário Cotta e sobrinho de Antão, cujo carro era puxado por quatro juntas de bois. Quanto mais pesada a carga, mais junta se atrela, com o máximo de quatro. A da frente são os bois de guia. Sempre os mesmos, ocupam como que posição vitalícia. A derradeira, os de coice. Na parada do carro aguentam o tranco, que jogam parte do esforço para as juntas do meio.

A saída do carro tem início pelos bois de guia, que obedecem a um leve toque na guiada - vara comprida com inúmeras argolas presas a uma espécie de ferrão. Ao tilintar das argolas, logo se põem em movimento e se arrancam em passos lerdos, sem afobação, nenhuma pressa, modo herdado do comportamento do carreiro, alma tranqüila, que ao longo dos anos se faz entender pelos companheiros de trabalho na árdua luta deste mundo, palmilhando os estreitos caminhos que serpenteiam os fundões desta vida.

O cantar dolente completa o atrativo da meninada irrequieta. Os solavancos nas trilhas irregulares constituem como que um desafio para se manter equilibrado no exíguo espaço entre os dois fueiros que servem de apoio nos momentos de intenso balanço. Porém, ao atravessar as raras planícies, que gozo sem conta, sentados de costas para as juntas, as pernas suspensas a balançarem livres, o olhar a querer ver tudo em frente e em volta, a estrada de terra ficando para trás, estreitando-se sempre, à medida que a geringonça avança... Como o canto triste do carro que me leva, triste também se torna tudo em volta, e até minh´alma.

Impera a monotonia, tal a preguiçosa marcha dos bois carreiros no esforço ingente a transportar as toras, toras das árvores que já galguei.

E, montado no carro, vou distanciando-me dos prados e das serras; das bicas em que bebi e dos corgos em que me banhei, parceiros de alegria nos momentos de intensas e santas estripulias no livre e sagrado espaço que Deus nos deu um dia.

E o carro cantava. Tudo era melodia.

As letras, eu inventava; a música, o carro fazia...

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