Hoje tem Quindim

  C021  
Minna Di Vienna | Novo Hamburgo RS
“Quindim, hoje tem quindim”, disse o rapaz ainda na escada do Toro Rosso, restaurante da área central da cidade. Nada de “bom dia”, “seja bem-vindo” e outros mais usuais. Ele me entregou a comanda e deu um sorriso.

Para que o leitor entenda os motivos desse cumprimento atípico vindo daquele moço tímido, será preciso atualizarmos o acontecido narrando os dois dias de duas semanas antes daquelas adocicadas palavras.

Era o dia um naquele mesmo restaurante e eu pesava meu prato. E, como de costume, dava uma olhada por sobre os pratos de sobremesa que se encontravam ali logo ao lado: “Hmm, não tem quindim…” cochichei para mim mesmo.

Nisso, a senhora, tão simpática quanto rosada em bochechas, me sussurra: “Domingo”.

Eu então a olho e dou um leve sorriso, meio encabulado pela petulância do cochicho que não deveria ter saído de minha cabeça… que ficasse lá, sem comprometer minha acurada educação. Agradeço, pego o meu prato e sigo em direção à mesa. Almoçado meio prato, aproxima-se a sombra da senhora, vejo-a se achegar com a mais recatada das boas intenções. Mãos para trás, quase dobrando levemente um joelho, me pergunta: “Para quando o senhor gostaria do quindim?”.

“De maneira nenhuma…”, disse eu, agora mais envergonhado, mas também ríspido, como se desse um pito a mim mesmo.

“…Em absoluto, não há necessidade alguma de fazer quindim para mim.” “Mas podemos fazer sem problemas, é só o senhor dizer qual dia fica melhor.”

“O que gasto em meu almoço não paga a quantidade de gemas da sobremesa. Não se preocupe, não se preocupe”, insisti.

“Amanhã eu farei para o senhor”, disse, levantando levemente o joelho esquerdo e retirando sua sombra de perto de minha mesa.

Eu fiquei um pouco sem ação, mas, evidente, com alguma satisfação do quiproquó que causei após aquela sutil e involuntária olhada para a mesa de sobremesas.

Chegando à empresa, resolvi então compartilhar tal feito com o pessoal. Nisso, uma das colegas do lugar disse que iria também se achegar naquela quinta-feira doce do Toro Rosso.

Era o dia dois e para que cheguemos logo aos finalmente deste causo, disposto a dosar, sem pormenores e sem culpa, o açúcar no sangue sem com isso causar qualquer mal-estar (ou, até quem sabe, para deixar aquele gostinho de quero mais), adianto que aquela quinta-feira nos reservou o melhor quindim de nossas vidas. Saí do Toro Rosso antes, elogiei a moça da confeitaria com todas as qualidades possíveis. E, por menos não passou minha colega pelo gerente ao sair, reverenciando aquele manjar como algo descido dos céus.

Tendo passado sem diabetes até os dias atuais, paro-me então com os pés direcionados para subir novamente os degraus do Toro Rosso.

“Quindim, hoje tem quindim”, disse o rapaz, ainda na escada do Toro Rosso [...] Entro na porta, vejo o gerente no caixa, contando dinheiro de cabeça baixa e, sem levantar a cabeça, me avisa que tinha uma encomenda pra mim naquele dia. Passo pelo corredor, olho para o fundo do restaurante — lugar onde sempre me sento — e vejo aquela simpática senhora sentada, me abanando e sorrindo. Coloco os dois fios de massa e a folha de alface no prato e sigo ao churrasqueiro: “Tirei o cordeiro mais cedo do fogo hoje, à sua espera”, diz, sem perguntar sobre o pedaço que quero. Faz um corte na parte mais suculenta e retira um belo acompanhamento àquela alface e aos dois fios de massa, adornando o espaçoso prato. Peso a comida, com um olho no preço e outro na sobremesa, e o moco da balança já me adianta que tinha algo especial ali naquela mesa: “Parece que foi o outro aí que pediu”, faz graça apontando com os olhos para um colega da empresa que sorria por sobre as saladas. Confirmo, com o olho direito, que o valor pesado não chega a dois dígitos e sigo à mesa de sempre.

Depois do cordeiro, das duas massas e a alface, levanto. O ato de levantar, já aciona uma ação instantânea no restaurante: o garçom que me viu indo em direção à mesa de sobremesa, me traz o café… preto sem açúcar. Chego de volta à mesa, com um prato menor, todo amarelo-vermelho e cheirando tão bem que nem precisaria de uma colher. Degusto aquele doce, como quem pode morrer em seguida. Olho para o lado, a mesma senhora simpática, em sua cor de rosto mais característica, estava me observando. Ela se põe a falar, com suavidade: “treze gemas peneiradas, duas xícaras de açúcar, uma xícara de coco, duas colheres de manteiga, vinte minutos ao forno a cento e oitenta graus. O segredo é untar a forma com manteiga e açúcar e peneirar os ovos”, lascou-me de pronto a receita do quindim.

Mas não se enganem. Ela me entregou a fórmula sim, mas não porque eu deveria parar de importunar a cozinha dela com minhas vontades, pelo contrário, ela queria mesmo me dar uma possibilidade simples de matar aqueles desejos pelo doce. Confessou-me todos os detalhes, com aquele tom amável de quem dá a receita mais sagrada e antiga a um neto.

Como se não bastasse todo o amarelado e doce daquele horário do almoço, saio pela porta e o outro aí me pergunta como estavam os quindins.

“Booonnnsss….”

Saio me perguntando como que, desde o moço tímido da entrada até o camarão ainda vivo na cozinha, sabiam do meu salivar pelo quindim? Por certo, foram meus pensamentos que dispararam em voz alta, sem refletir, pelo desejo de açúcar neste corpo. Encantado com os dois dias das duas semanas anteriores, havia sussurrado novo desejo pela delícia dentro do lugar, de modo que a informação se achegasse à cozinha. Se havia conversado com a toalha do banheiro, se fora aquele olhar penetrante ao preto do café, ou mesmo se num diálogo com os talheres… de algum modo havia externado este narrador que o sangue pedia ao corpo mais açúcar.

Almoço ali todos os dias, ainda que de período recente, mas não entendia se era por cortesia ou educação que me tratavam com tantos agrados… poderia também pensar que fosse pelo rigor do treinamento que a gentileza se daria… mas não… não naquele lugar, tão distinto, tão peculiar. Eles me educavam nas mesmas coisas: no cordeiro, no cafezinho, em cumprimentos alegres na chegada, em boas conversas ao retirarem o prato e agora com o quindim.

O fato é que, seja por cortesia ou educação, desde o buongiorno, com beijo de senhora requintada no entrar, até a conversa sobre a bela paisagem do lugar, eles assim me faziam achegar… e perdurar. Acomodando-me naquele espaço, em discreto acarinhar e me acalentando o querer voltar. Naturalmente, eu voltava.

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