O Campinho

  C019  
Yuka | Macaé RJ
Parte relevante da história do futebol em Macaé passou pelo quintal de minha casa. Quem disso não sabe, perdeu de ver as defesas mais bonitas do meu irmão mais velho, os lençóis e canetas de Nortinho, as faltas perfeitas de Gualter, as tabelas de Gugu e Bimbim... As tantas cabeçadas na parede de um flamenguista que jogava mordendo a língua.

Aos sábados, por volta das duas da tarde começava a chegar a molecada. Uns vinham a pé, outros de carona, “camelinha” ou “busão” - já teve gente que veio de carroça e me lembro de certa vez meu pai conseguir um caminhão para trazer uma gurizada que estava muito, muito longe.

Às 15h, fizesse sol ou caísse "chuva de canivete", a pelada começava. Um campinho para cinco contra cinco, cada time com seu jogo de camisas, a cal demarcando os acessos e a marca do pênalti - ouvia-se o apito. Nada de luxo ou patrocínio, transpiração pura: era o que transbordava de nós; nossa vida num RPM morrendo em batalhas e o aprendizado em lidar com os ponteiros do relógio.

Quase sempre havia lanche nos intervalos, às vezes o “tempo fechava” e a "porrada comia". O clima esquentava, combustão anunciada de alguns ritos de passagem - a coisa ficava bem tensa quando havia medalhas e troféus; Durkheim é um gênio.

Cerca de cinquenta crianças, mais a vizinhança e os pais habitavam esse templo, aquilo era a nossa religião; a sinagoga dos nossos delírios - o futebol é Deus vestido de goleiro quando defende e de centroavante quando ataca. Ali era o nosso Maracanã, nossa Vila Belmiro, um pedaço das Laranjeiras ou um terço do gramado de São Januário; ali era o que restava da paixão de um torcedor do América F.C..

Atrás de uma das balizas havia um parapeito e eu gostava de lá sentar para ver as demais partidas - naquele inverno de 86 tomei uma bolada tão forte na testa que caí para trás sem qualquer reação, queda livre da puberdade de cabeça no cimento. Minha mãe correu gritando para acudir. Pausa. Um pouco de sangue nas mãos, um saco de gelo e nem pensar em deixar de participar do restante da festa. Somente na hora de dormir que se percebia o tamanho do "galo" e se sabia, então que ele "cantaria" a noite toda. E pela manhã? Ah, de manhã começava tudo de novo; outra vez mais cinco ou seis dezenas de crianças invadindo o quintal da Acapulco 223.

Assim, seguia aquela infância que ficou para sempre em nossos pés, traços de uma procissão que não queremos parar de seguir. Todos os finais de semana por muitos anos esse manifesto se esculpia na forma de brincadeira. Tem gente que o rosto foi mudando nas minhas lembranças; um dia a barba chega sem avisar e a rotina vai apresentando outras ocupações que pedem nossos cuidados. Anteontem sonhei com meu filho pintando este campo no seu caderno de desenhos. Acordei chorando.

Blogger | Mod. Ourblogtemplates.com (2008) | Adaptado e editado por Flávio Flora (2018)

Voltar