Inverno e incertezas

  C027  
Fernandes Pereira | Lambari MG
A vida é um caminho rodeado de incertezas. Tudo sofre os riscos. Estamos dentro de um carro e não sabemos se podemos vivenciar tragédias. Saímos de casa sem saber se é o último dia que nos resta. Podemos perder pessoas a qualquer instante. Pode ser o último abraço, o último sorriso, a última conversa, o último olhar. Nascemos já na incerteza. Nascemos sem saber o que será de nós. E esta parte pré-infante fará parte de nós até morrermos. Sempre teremos vontade de voltar pra proteção do ventre materno. Sempre encararemos processos dolorosos, como o nascer. Não sei se hoje foi o último sorriso que papai me deu. Se foi o último "vai com Deus" que mamãe abençoou. Se foi o último dia de trabalho.

É bem certo que não nos resta outra coisa a fazer na vida do que arriscar. Prudente e conscientemente. Ouvindo a voz do coração e da alma. A da razão também. Pessoas vão e voltam, mas não se perde aquilo que nunca se teve. Só se perde aquilo que nunca foi nosso. Ou que apenas nos foi emprestado para ascendermos na escola chamada "vida".

 Tenho a plena consciência de que nada na vida acontece por acaso, sem ter um fim, ou um caminho a ser mostrado. Sei que posso mudar muita coisa. Que posso ser mais feliz. Que posso desafiar, enfrentar e vencer. E vencer até nas derrotas. Mas também sei, e muito bem, que não posso ter tudo o que quero e do jeito que quero.

Tenho sonhos grandes demais para a miséria humana, a começar pela minha. Coloco as coisas no álbum da vida. Muitas já estão postas. E muitas ainda serão colocadas lá. E outras também é preciso colocar sem mesmo eu ter tirado fotos para ver como seria. Colocarei fotos em branco. E no verso escrito o que eu gostaria de ter vivido. Nomes, lugares, instantes.

Agora estou aqui ouvindo a voz de um coraçãozinho meio rouco, descompassado, fingindo que não estou vendo tudo o que se passa dentro dele. Mas seus sinais são tão claros que falo com ele. Aguenta coração.

Há momentos em que parece estarmos próximos ao sol das montanhas. Bem pertinho do brilho que ele traz. Mas chegamos um pouquinho tarde e ele já se pôs, atrás dos montes. Sentimos apenas a paisagem de inverno. Um cinza pálido.

É muito evidente que já cresci; mas dá uma vontade de fazer birra, de gritar, espernear, chorar, como criança que não abre mão daquele desejo. E o coração amolecido dos pais acaba concedendo. Mas o meu corpo e alma adultos já não me permitem mais agir assim. Resta-me voltar pra casa e agasalhar-me no meu cobertor daquele inverno em que não vi o sol. Posso chorar. Posso falar com Deus. Posso paralisar.

Minha alma de artista me confunde muito às vezes. O processo criativo desnuda de tal maneira minha alma que penso que é possível viver só de alma, só de sonhos coloridos. Mergulho de tal forma no mar da arte que de repente me vejo pintado num quadro, posto num romance, projetado num filme, vivo num palco ou escorrendo em versos.

Não quero fugir da realidade. É preciso enfrentá-la. Mas quando e como eu puder. Não sou nenhum herói. Tenho meus limites de tempo e digestão. Aliás, cada qual tem seu tempo. Muitas vezes as relações entram em falência, ou nem começam, por falta de respeitar o limite de tempo do outro. Meu amor tem um tempo. Minha mãe, meu pai, meus irmãos, amigos, humanos... Se fui feito lento ou ligeiro, tenho que saber que posso frear ou avançar pelo outro, se necessário for. Posso ajustar meu relógio atrasado. Posso voltar um pouquinho meus ponteiros apressados por terminar logo o dia.

Estamos aqui. Eu e as palavras. Companheiros pactuantes. Nos socorremos para não enlouquecermos. Com elas eu já havia deixado o portão aberto. A porta sem trinca. A casa arrumada. E por agora, vou lá fora neste frio de inverno e fecho o portão. Despeço-me das imagens. Dos arranjos planejados. Fecho a porta. Deito. Fecho o livro. O livro que estava escrevendo dentro de mim.

Loucuras? Não sei. Devaneios? Sim. Ou não. Verdade? Esta eu garanto. Não há mentira em nada do que falei.

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