Hesitações

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Tatoo | Brasília DF
Durante todo o ano que passou, colegas que aderiram a um programa de demissão incentivada oferecido pela empresa, partiram para outra fase de suas vidas: agora, aposentados. A cada mês um pequeno grupo partia. Homenagens, lágrimas, gratidão... Saudade instalada a cada evento.

Participei de alguns. Sempre há pessoas que ultrapassam a linha que separa os colegas dos amigos. Às que “transgrediram” e atravessaram essa fronteira, eu fazia questão de me despedir pessoalmente.

Sou daqueles que não manifesta afetividade de forma espalhafatosa, ainda que, por dentro, os sentimentos estejam enlouquecidos. Demonstrações às pessoas que me são caras se resumem a um abraço. Bem apertado; corações encostados. Quem recebe um assim, pode até não saber, mas é especial.

O derradeiro evento, em dezembro; reuniu pessoas que adiaram ao máximo a saída. Lá se foi outro grupo levando consigo um pouco de nós e deixando conosco um pouco de si.

Fevereiro nem chegou ao fim e tanta coisa aconteceu desde a saída desse último grupo. Ontem, por volta das três da madrugada, uma dessas pessoas viajou, foi para outro país. Mudança radical, de vida e geográfica. Agora, distante, reflito sobre nossa relação: amiga diferenciada. Detinha um jeito descontraído de viver, sempre de alto astral, mesmo quando em situações difíceis.

Tão logo ela revelou os planos futuros de se mudar para outro país, eu senti um aperto na garganta... Um misto de medo e vontade de dizer que ficasse.

Penso que decorre do sofrimento por minha separação. Porém, não quero lembrar dessa fase de minha vida, agora. Prefiro pensar nessa amiga ausente.

Nossa amizade foi construída ao longo de dez anos, homeopaticamente, com materiais de primeira qualidade. Ano passado, surgiu uma brincadeira, um certo jogo de sedução nunca levado a sério, depois de um comentário que fiz, sobre como achava bonito o desenho de seus lábios. A partir desse elogio, ela passou a me enviar fotos da boca, cada vez com um batom diferente. Abraços, olhares, comentários passaram a fazer parte de nossas conversas, contudo, sem ultrapassar determinados limites. Depois que ela saiu da empresa, senti certo vazio, uma lacuna que clamava preenchimento. Dava-me vontade de contatá-la, mas freava o ímpeto: “melhor esperar passar”.

Parecendo desafiar meus pensamentos, certa manhã, enquanto eu iniciava os trabalhos, meu celular vibrou. Mensagem dela contendo uma foto. Imaginei uma dessas figurinhas de bom dia que, aliás, nem gosto. Ao clicar na imagem assustei-me com ela despida, deitada na cama, insinuante. Um nu artístico. De maneira dissimulada, escreveu “Olha o estado desse lençol”.

Deu-me uma comichão da nuca até o cóccix. Que visão! Mais tarde, naquele mesmo dia, enquanto saboreava meu cappuccino diário, nos falamos via mensagem de texto, pelo celular. Disfarcei ao máximo a intenção que me martelava a cabeça: uma explosão da libido desde a visão da foto. Eu só pensava em ver, tocar, experimentar aquilo tudo ao vivo. Os neurônios da razão, se é que existem, aconselhavam-me: “olhe suas, cicatrizes”.

Quando acompanhado de uma xícara de cappuccino, meus pensamentos, viajam. Crio histórias, possibilidades... Lembro-me da fala de meu orientador no mestrado, que me dizia: “você vê a vida narrativamente”.

A partir do nu artístico, meus sentimentos por essa amiga se transformaram. A antiga e bela amizade ainda existia e continuará existindo, mas a ela se agregou certa picância. Deu-me vontade, inúmeras vezes, de saciar determinados desejos. A cada uma dessas vezes, aqueles neurônios criavam mil e uma barreiras para me desencorajar.

Se de um lado havia a turma dos neurônios racionais, do outro, havia os rebeldes, que protestavam: “o que você tem a perder? Foi ela quem provocou! Vai ficar para sempre com esse medinho?”.

Ocorreram sangrentas batalhas entre os dois exércitos de neurônios. Muitas baixas em ambos os lados. Ansiosamente, eu acompanhava os embates... Momentos houve em que peguei o celular e fiquei a um triz de arriscar. Sempre inventava uma desculpa qualquer para não agir.

O tempo passou. Os neurônios racionais, ajudados por uma avalanche de hesitações venceu a guerra. Minha amiga, agora, está às voltas com a ambientação no país governado por Emmanuel Macron e, neste momento, encontro-me enlevado por trilha sonora de uma lista de músicas que gosto. Tento registrar lembranças e percepções dessa experiência, afinal, vivo (vivo?) minha vida narrativamente.

Ao alcance das mãos, uma bela xícara de cappuccino e meu computador. Beto Guedes, em uma dessas “coincidências” que o destino proporciona, parece me ensinar: “... o medo de amar é não arriscar, esperando que façam por nós o que é nosso dever, recusar o poder...”

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