Estas histórias, quem sabe...

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Azul | Ji-Paraná RO
Tudo acaba diante de nós. Não ouvimos o lamento, nem a tardia confissão, graças. Somos agora lembrança boa ou má. Vagamos sem saber do abismo sombrio do Nunca Mais. Fragilíssimos, eis o que somos.

Estamos sempre a mercê de infinitesimais organismos indistintos ou rebeliões celulares. Situações à revelia, a despeito de sermos corretos ou imprudentes cidadãos. E esse é nosso caminho, independente dos passos à frente ou de outros atrás. Parece lúgubre, não? Mas, não é! Não estamos acostumados, ainda, com o irreversível.

Poderia começar assim: reminiscências de novo? É elas são constantes em nossas vidas e precárias existências. Não há dicotomia. Apenas realinho impressões que mais tarde a posteridade poderá conhecê-la e servir para desvendar um pouco essas experiências intrínsecas.

Venho rascunhando desde os tempos de menino entre os meus doze para catorze anos. Inicialmente, copiando textuais que achava interessantes, quadras poéticas, versos e logo em seguida, influenciado, a primeira ficção criada nos moldes ou estilo norte-americano. Minha avaliadora, a Rosinha, prima em segundo grau... Retifico.

As iniciais lavradas foram lidas e apreciadas pela portuguesinha, a Dalva, uma das musas juvenis. Esplendorosa nos seus quinze para dezesseis aninhos, harmoniosa de rosto, corpo cheinho, gracioso e voz suaviloquente: “Faz outra pra mim”! E eu fazia os versinhos de pés quebrados.

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Desde então, o rolo compressor da sucessão espaço e tempo, milésimos, segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, ampliou-me os horizontes e gravando em contos e alguns semiautobiográficos, das crônicas ou à prosa curta ou de pouco fôlego, ficcionista.

Através das sequências simplificadas ou intrincadas do cotidiano, cavadas aqui e ali, das figurinhas minhas ou não conhecidas as de ouvir falar; dos emaranhados de cunhos idiossincráticos, psicológicos de suas culpas ou presumíveis inocências, das improvisações e dos resquícios das realidades presentes e pretéritas e outras inventadas ao devaneio, moldei quase tudo. E nisso lembro que ninguém pode afirmar de boa-fé que cria do nada quase tudo.

Contentamos com a ilusão, a verdade, reimpressões, a maior parte já dita. Extasiado, descobri o realismo ao que denominamos vida e da sua finalização à transmutação da matéria. Mentes privilegiadas sabiam disso. E vem à mente imaginária figura, horrenda, com sua ferramenta ceifadeira, falciforme, diariamente, onipresente. E ela ganhou uma conotação diametralmente oposta a tudo quanto então se maquinava racionalmente, quando ouvi à beira do invólucro de madeira, a mãe do meu amiguinho, o Maurity.

Ela o consolava ajeitando pela enésima vez a mecha de cabelos que o ventilador em sua rotação máxima, teimosamente desmanchava de sua posição originalmente penteada. E alisa o rosto frio do amantíssimo esposo e pai extremamente dedicado, ali impassível à sua clausura quase definitiva:

“Padeceremos todos nós, Isabel, Leandra, Paulo e Maurity com o desencarne! Porém, ficará à memória em cada um ao deitar e acordar; à mesa do café da manhã, almoço e jantar; ao ouvirmos os sons do rádio de pilha na calçada às noites calorentas de Verão. E eu, em minha cadeira de balanço com assento e encosto de palhinha; ele em sua espreguiçadeira modulada, reclinável e montada em lonita azul. Vocês correndo rua afora em noites de plenilúnio brincando de “pegador” ou nas de novilúnio, de “esconde-esconde”.

“Aprendam agora sobre a finitude da matéria, do ânimo que a incorporou e a ausência dela decorrente. É algo que deveríamos acostumar certa, incontestável, insofismável e profundamente dolorida. Não é qualquer um que a compreenda perfeita ou que o aceite plenamente – especialmente vocês, eu, inconsoláveis. Infelizmente, a hora chegou para o teu pai!“


E esboçando leve contração labial, beijou-o, abraçou um por um, ao lado da urna mortuária, prosseguiu:

“Nada àquela manhã ensolarada denunciava o que iria acontecer. Todavia, deixou raízes e não saiu deste orbe sem deixar herança. Enquanto viverem e dele recordarem teu pai jamais desaparecerá de todo. Vive em mim e principalmente em vocês, perpetuado, assim como aconteceu com os seus antepassados. Excelente esposo e companheiro. E os bons como ele ficam à memória àqueles que o conheceram ou conviveram mais intensamente ao seu redor.

"E recordando que falastes da vida cruel e injusta, concordo plenamente. Ela escolhe por nós os caminhos a serem trilhados, os instantes vividos e os encontros indesejados. Logicamente, direcionamos ações. Entretanto, elas ocorrem, também, sem a nossa permissão ou interferência racional. É a chamada aleatoriedade das coisas tão presentes a cada instante de nossas efêmeras existências. As maiorias dos fatos ocorrem por simplesmente acontecer, sem fórmulas ou previsões cartesianas”!


Aos pés da caixa escutei a lição de vida e fortaleza, acatamento ao imponderável. Meus olhos marejaram. Pensei no meu genitor, ainda, vivo e forte, resoluto, e na postura sem amargura de aquela mulher pequenina e ao mesmo tempo gigantesca nos propósitos, cônscia de que a vida continuaria indiferente às baixas que a finitude instintivamente promove.

Assim, alinhavando histórias e estórias, antenadas nos acontecimentos à roda familiar e amiga; conversações e lamúrias íntimas, estranhas, solitárias, algumas aterradoras, acertos – pouquíssimos – e enganos, as maiorias irreversíveis humanas, falíveis, propriamente ditas. Quatro ou mais décadas são passadas. Poderia nessa transitoriedade ter feito diferente, melhor? Possivelmente! Quem sabe? Talvez? Escrevo à posteridade onde por ventura possa ser vista, lida e repensada por mentes mais fecundas e abertas, contemporizando-se ao futuro ou simplesmente relegada, ignorada pela sua pouca contribuição.

Afastei-me do insepulto e da família lutuosa. Despedi-me dos meus amiguinhos com um aceno de mão, pois, da garganta nada saía, voz embargada pela emoção cúmplice. Complementei, movimentando a cabeça e saí com a impressão que o ato não terminara. Ganhei a calçada pavimentada. Caminhei rente aos muros divisórios das casas silenciadas de ruídos em respeito, com suas portas e janelas fechadas ou encostadas, semigretas. Pensei: Poderia ter sido comigo! Estaria preparado? Teriam os meus a capacidade dedutiva aparente ou igual à mãe do Maurity? Teria alguém escapado por mais tempo desse infortúnio?

Caminhei para baixo dos arvoredos frondosos afastados dos meios-fios em pedras graníticas; desci da calçada, em alguns trechos ladrilhados com motivos geométricos e linhas gregas. A temperatura acima dos quarenta graus era por demais causticante, então, recolhíamos às suas sombras, ao tronco rugoso, galhos estriados e suas folhas miúdas, pequeninas, iguais, vagens longas, marrons e ao caírem espalhavam suas sementes ressequidas e prontas ao replante natural.

Apressei os passos, alongando-os propositadamente como a fugir das visões desalentadoras, destrutivas, cenas chocantes do desencarne e da renúncia forçada. Creio que o humano jamais se acostumará com essa decrépita figura, senhora do Destino que a todo o momento reclama e busca companhia. Concluo ainda, somos inconscientemente uma incógnita que somente o tempo, esse pontual senhor de todos nós, certamente pode um dia revelar.

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