Desenredo

  C101  
Sarita Bezerra | Juazeiro do Norte CE
Eu estava grávida e nervosa. Na sala estávamos eu, minha coordenadora e um pai. Este me acusava de haver desestimulado sua filha, e eu o ouvia com solicitude. Das poucas disciplinas que conclui em um curso de aconselhamento que realizara, uma delas me ensinara que a ação de ouvir atenciosamente e analiticamente pode me render boas respostas e me fazer inferir contradições para um uso futuro a meu favor. Então, pus em prática.

O objeto de estudo era uma das minhas alunas do sexto ano, Manuela. Raquítica e extremamente pálida, talvez por conta do seu estado debilitado de saúde, Manu, como alguns a chamavam, já se submetera a algumas cirurgias. Da enfermidade, nada se sabia; as informações eram vagas e a descrição excessiva. Quanto à sua conduta, era uma aluna de poucas palavras, desatenta e pouco participativa. Das ministrações das aulas, não inferia assuntos básicos e seu rendimento, notavelmente, inferior à média.

No dia do ocorrido, eu dera início a minha comum metodologia: visto nas atividades e recolhimento de tarefas – extras, caso houvesse. Solicitei a produção textual recomendada para casa na aula anterior e, como de costume, alguns alunos apresentaram, outros não. Manuela fazia parte dos que não realizara e eu recolhi sua agenda a fim de realizar as anotações corriqueiras e necessárias para o acompanhamento e ciência dos pais. Em seguida, desenvolvi minha aula com teorias e exemplificações. Mas essa é a minha versão. Em casa, o enredo tomara uma nova conotação, a seguinte:

— Manuela, onde está sua produção?

— Professora, eu não consegui fazer. Amanhã eu trago, viu?

— Ah, sei! Suas promessas, como sempre, semelhantes às de políticos.

Isso a entristecera por demais, ao ponto de ela perder gosto pelos estudos. Em casa, não falava, não comia, não estudava. Suas notas sempre vermelhas e sua agenda cheia de carimbos e observações preocuparam os pais. Chamaram-na para conversar e entre lágrimas, foi-se revelado a impulsionadora da sua derrota escolar: eu e o que eu disse, ou supostamente disse, não sei. Chamei-a de mentirosa! Pior, caracterizei-a de político. Decerto a ofensa foi a comparação ou talvez a conclusão da comparação. Mas isso não importava, eu a desacreditei.

Durante o depoimento do pai, vagueei minha mente à procura dessas palavras, não as achei! Meu álibi era nunca ter usado tais expressões durante minha vida. Não fazia parte do meu vocabulário ou dicionário de respostas-prontas para alunos, mas seria uma saída plausível? Tentei, todavia não me deram crédito. Eu quis rir, pois é o que geralmente faço quando não sei bem o que fazer ou dizer ou por estar diante de uma calúnia descabida daquela, mas o assunto pedia seriedade. Eu estava sendo acusada de algo que não fizera. Então, recompus-me irada por estar naquela situação e indaguei o pai: “Onde está sua filha Manuela? Por que ela não está aqui? Chame-a!”. Mas o pai se negou, não iria expor sua amada àquela situação. “É minha palavra contra a sua, pai!” – eu afirmei pondo fim ao caso.

Ao ver que isso poderia desmerecer sua filha e me vitimar, solicitou que a coordenadora retirasse a aluna da sala e a trouxesse ao local que estávamos. Mesmo assim, eu me senti vitoriosa, pois não ocorrera a situação em questão e a aluna reconheceria seu erro.

Ela entrou. Ao olhá-la, perguntei simpaticamente que história era aquela. Olhei-a de forma angelical, demonstrando que apesar do “engano” eu a perdoaria e que tudo ficaria bem, ela só precisava confessar que estava com medo da reação dos pais diante suas notas e por isso inventara afirmação tão falsa e desonrosa a meu respeito.

Ela me olhou, chorou demasiadamente e, entre soluços e trêmula boca, confirmou que eu realmente a nomeara mentirosa e farsante. Eu quis chorar também. Senti um frio percorrer meu corpo e quis desmaiar, mas me contive. Não queria revelar-me atriz, o papel já estava bem ocupado! Eu cheguei a acreditar que realmente dissera tais palavras, mas sabia que não. Manuela, era uma criança de apenas 11 anos, e o senso comum sempre diz que toda criança é sincera, não mente. Foi nessa afirmativa que todos se embasaram e chegaram ao veredito: eu era culpada.

Na volta à classe, todos queriam saber da infeliz Manuela o que acontecera, mas ela não mudou sua personalidade e continuava plácida e alheia às situações.

Eu, não fui demitida, estava grávida. Lembram? Mas vivi nove meses de entreolhares e desconfianças. Até você deve estar se perguntando se sou realmente inocente. E quer saber? Nem eu me atrevo a confirmar ou negar. Julgue-me! Afinal, essa é uma tarefa fácil.

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