Sequelas do tempo

  C100  
Creido | Belo Horizonte MG
Aviso: este texto contém melodrama. 
É indicado que você o leia com uma música do Coldplay ao fundo…

A primeira coisa que eu fiz na vida foi morrer. Não sei muito bem o que aconteceu, pois tenho apenas vagas memórias (para dizer a verdade, não sei se essas memórias são reais ou se elas surgiram depois que eu comecei a tomar Whey Protein para malhar – e nunca fui malhar).

Tudo começou com minha depressão pré-parto. Quando meu pai viu a correria dos enfermeiros, assim que nasci, ele ficou feliz, pois achou que estavam todos se juntando para ver como eu era bonitinho. Mas não: eu nasci tentando me estrangular com o cordão umbilical. Por isso, após alguns minutos, alguma correria e meia dúzia de médicos (para quem é de Humanas, meia dúzia é aproximadamente 6), meu pai percebeu que algo estava errado.

Bom, conseguimos contornar aquilo, mas os médicos não sabiam se minha morte e ressurreição prematuras deixariam sequelas. Fisicamente, acho que não restou alguma (bem, ou, pelo menos, eu não me lembro de muitas sequelas desde que comecei a tomar o Whey). Todavia, com o passar do tempo, meus pais acharam que eu estava um pouco atrasado. Com quatro anos, por exemplo, eu até que falava, mas mal. Pior que minha irmã caçula! E olha que estamos falando da Gabriela, que nem é a mais inteligente das irmãs.

Uma médica, então, disse que eu poderia ter tido algum problema com o nascimento, devido a uma suposta falta de oxigenação. Dessa forma, o ideal seria começar a fazer tratamentos desde novo. E foi assim que entrei no kumon e no jiu-jitsu.

Para quem não sabe, kumon é uma coisa japonesa que eu também não sei bem o que é. É mais ou menos um método de estudo que tem uns livrinhos de cálculo, no qual temos que fazer cada bateria de exame dentro de um dado prazo. A ideia do método é nos focar, para conseguir fazer exercícios de forma rápida e aprender contas avançadas de cabeça. Ou seja, kumon é uma técnica japonesa de fazer japoneses pelo mundo.

Eu fiquei no kumon, se não me engano, dos quatro aos oitos anos.

Já o jiu-jítsu é uma luta milenar, provavelmente vinda do Japão (quase todas as artes marciais vieram de lá, afinal de contas, tem que ser muito ninja para uma ilha daquele tamanho continuar existindo depois do Godzila, da Mothra, dos monstros do Jiraiya, do Tamagotchi). Mas o fato é que o jiu-jítsu ficou mais legal quando adentrou em terras brasileiras e virou BJJ (Brazilian Jiu-Jitsu). Portanto, não espere golpes plásticos e belos (como no kung fu), suaves e inteligentes (como no judô) ou poéticos e rítmicos (como na capoeira). Não, cara! O jiu é tupiniquim e, por causa disso, a única regra que impera nele é a treta: agarração, capotamento, puxada de braço, assentadas na cara, sovaco no nariz. Tudo é permitido (com exceção de golpes vindos de outras lutas, pois são organizadinhos demais para o caos brasilis marcialis). Por isso, não se trata propriamente de uma arte marcial, mas sim de uma rixa descontrolada típica das melhores mosh do Rock in Rio. Não é à toa que é uma luta que inspira há anos trombadinhas do mundo inteiro.

Fiquei bastante tempo no jiu-jitsu. Uma década! Com muito menos, algumas pessoas teriam virado o Bruce Lee. Eu, por outro lado, fiquei parecido o Kung Fu Panda. Foi nessa época que aprendi que eu não gosto do esporte… e o esporte não gosta de mim. Quebrei uma perna, fiquei com tendinite nos dois ombros, fisioterapia no joelho direito, machucado no pescoço.

Bem, tudo isso eu contei pensando no que aconteceu hoje no supermercado, aqui perto de casa. Após efetuar minha compra, fui embora carregando a bagaça inteira. Eram só quatro quarteirões de caminhada, mas quase me matou: levava 200 temerosos de compras (de sabão a dois quilos de carne). Cheguei em casa suado, com os braços latejando, com os dedos semidecepados pelas sacolas brancas. E foi aqui, após guardar o essencial, que lembrei que eu tinha ido ao supermercado de carro.

Essa reflexão de vida, desde meu nascimento problemático até o supermercado, foi só um pretexto para pedir minhas sinceras desculpas: me perdoe, pai, mas acho que o dinheiro que você investiu no kumon e no jiu-jitsu não valeu pra nada.

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