Céu e Terra

  C069  
Sobel Veríssimo | Fortaleza CE
São Paulo, Monumento às Bandeiras, a caminho do saudoso Ibira (Parque do Ibirapuera). Acordei sobressaltado, num solavanco, após os gritos de uma parceira de viagem já exasperada. Como fazem os bons turistas em fim de viagem, com pouco dinheiro, disposição razoável, mas querendo aproveitar ao máximo cada átimo de tempo restante, partimos para nossa correria matinal.

O Sol já quase a pino, consequência por ter acordado tarde demais. Ainda hei de dizer "bom dia" pelo caminho umas três vezes (e só então ajustar o relógio biológico errante ao turno vespertino) e ser corrigido em resposta "boa tarde?!" disse-me o homem da feira, a moça do guichê do metrô e um transeunte educado, às vezes acenando, quando não simplesmente arqueando. O cenho, os ombros. O peso cotidiano. A rotina do trabalhador mundano. "Corre menino, o Ibira não vai ficar esperando".

Desliguei na cabeça o ascendente em aquário, outrora divagando. Acionei o ariano. Caminhei mais rápido. Sempre me dei bem com voz de comando. Gosto de ter alguém por perto me lembrando a viver nesse plano. Um ônibus, algumas quadras marchando, andando, por vezes dançando, pra acompanhar o giro dos torvelinhos do inverno, o ar quente abraçando uma bruma fria, eu no meio, afagando. Respirando férias, a fatia premiada, a porção dourada dos doze meses. O intervalo no fim da ampulheta, antes de virá-la do outro lado e deixar a areia correr de novo pra baixo. O pó desse chão levado ao vento, a lembrar o etéreo estado passageiro de todas as coisas. "Bora menino! Já vai dar 14h!".

Aterrissei. Acelerei o passo. Até que enfim. Só mais um semáforo e uma avenida nos separando do destino. Ao meio, aquela obra colossal de pedra, divisando a selva de prédios do parque verde na outra margem. Atravessei o rio de asfalto, seguindo o cardume de gente. Alguma coisa no céu me pescou o olhar. Fitei o mar celeste, banhando os homens de pedra. Dois pontinhos pincelavam de preto o horizonte anil. Haviam duas pessoas lá em cima? Muito antes de me inquietar com a surpresa, meu pensamento rápido encontrou uma certeza: Era possível subir até ali. Cheguei mais perto.

Depois de alguns gritos de cá pra lá e de lá pra cá, o rapaz (que fazia parkour) disse que ia me ajudar. Subi. Quase morri? Talvez. Só me dei conta disso lá em cima. Mas é nessas horas vivazes que algum gatilho nos dispara um tiro de vitalidade. Talvez seja o que chamam de adrenalina. Do alto, pensei no tamanho da minha sina. Podia avistar lá embaixo minha amiga, impaciente, segurando minha mochila. Precisei me desvencilhar para escalar. Leve, foi como me senti. Minha bagagem de vida também havia ficado para trás. Os problemas, a lida. Por alguns instantes, tudo pareceu tão pequeno. Respirei fundo, profundo. Fechando os olhos, sentindo a fundo. Então os abri. Encontrei um cavalo de pedra com a sela livre. Assentei-me e abri os braços. Abracei o momento. Atei no ar infinito um laço. Tomei as rédeas da vida. Desbravei o interior do meu peito. Desagrilhoei do coração o peso do imperfeito. Deixei a liberdade colonizar o solo do meu sentimento. Então ergui a cabeça e resolvi explorar. De uma ponta a outra, esquadrinhei, do ínfimo ao vasto, tudo o quanto pude avistar.

Deslizei o olhar. Ao chão, vi minha amiga deixar escapar um sorriso. Fez uma foto. Ah, memorável foto! Talvez por incentivo dos inúmeros outros que lá embaixo apontavam e me fotografavam. Já podia descer, mas demorei mais um pouquinho. Estava gostando de estrelar o papel de bandeirante, no Monumento às Bandeiras. "Quanta besteira" - Devia pensar minha amiga, aperreada com a minha leseira. Fechei os olhos para me despedir dali, esquecendo tudo por mais uns instantes e me permitindo simplesmente existir.

Desci. Como? Nem eu sei. Encontrei minha amiga, rindo. Falou-me alguma coisa sobre a polícia e o monumento ser tombado, mas, perante ali, a graduação em Direito ao longe havia ficado. Pedi para ver a foto. Harmonia cromática. Foi o que pensei. O casaco azul, da cintura pra cima, e a calça marrom, da cintura pra baixo. Encontro de céu e terra. Meu arranjo preferido! Mais uma admoestação e então seguimos rumo. "O tempo tá corrido!".

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