Café da Manhã

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Inês Abrantes | Fortaleza CE
O vapor fumegante concentrava-se sobre o bico embeiçado da chaleira fazendo uma curva até dissipar-se num manto de fumaça quase invisível. Ela ia coar o café, colocá-lo na garrafa branca com desenhos azuis imitando ladrilhos portugueses. Depois servia as duas xícaras de porcelana, retirava as fatias de pão integral da torradeira e distribuía sobre a mesa as frutas do dia, geleia de laranja, queijo brie ou qualquer outro, ritual que repetia todos os dias há vinte anos.

Uma pluma de vapor agora transferida para as xícaras inebriava o ambiente com o aroma adocicado e característico de café coado, um cheiro que lhe despertava a memória afetiva, guardada num recipiente de seu inconsciente, sua companhia dali para frente.

Frescos, ar e luz de um dia ensolarado entravam pela janela entreaberta. De fora, ouvia-se a sinfonia dos pássaros que se aglutinavam na alameda arborizada onde faziam morada, despejando sua cantoria em total inocência do que se dava naquelas quatro paredes, felizes por não terem consciência de seu destino. Por ali, escondia-se o último reduto da natureza em meio ao caos urbano, onde ficava o antigo prédio de dez andares.

Logo, o cantarolar da passarada seria diluído no barulho que sucedia a entremanhã. A cidade acordava. As buzinas, as vozes dos trabalhadores da construção civil na obra da esquina onde seria erguido o maior prédio da cidade, o motor das máquinas, toda uma confusão de sons urbanos inibiam qualquer manifestação de uma natureza tímida.

Ela inspirou o aroma do café e deixou-se absorver pelo sibilar do vento que atravessava os quase quinhentos metros que a separavam do mar. Pegou a colherinha de café e mexeu distraidamente o açúcar mascavo na xícara, como uma ocupação secundária porque sua mente estava submersa em lembranças. Ao ver a outra xícara no lado oposto da mesa, sentiu o antagonismo daquela situação – em vez da partilha de antes – e foi subtraída de seus devaneios. Teve medo da solidão.

Entretanto, ele chegara. Cabelos molhados, cuidadosamente partidos à esquerda brilhavam à luz, muito embora o grisalho do tom e a calvície adquirida ao longo dos anos. Olheiras destacavam-se em seu rosto, semelhantes a pequenas poças d’água, a linha do maxilar já perdia vigor, acentuada pelas rugas ao redor dos lábios. Após o banho, costumava tomar café ainda de roupão e chinelos, mas naquele dia, estava socialmente vestido e uma sobriedade na expressão.

O silêncio rompido pelo arrastar da cadeira, imediatamente restaurado, rompido mais uma vez pelo tilintar da colher na xícara de café. Novamente restaurado – o silêncio – desta vez sepulcral, em contraste com o barulho da vida urbana. O olhar de um encontrava o olhar do outro, ao que o outro desviava e voltava a encontrar e desviar; por alguns segundos, deu-se esta acrobacia tímida que ora revelava um duelo, ora pressentia-se um incipiente adeus às armas.

O tilintar da colher repetiu-se por mais algum tempo até cessar. O café foi sorvido diligentemente de modo que não se emitisse nenhum ruído por mais suave que fosse. Enquanto ele degustava o café, ela ficara estática, olhos sombrios fitavam a xícara que poderia ser qualquer outro objeto pela desimportância que qualquer coisa teria naquele momento. Foi aí que ela iniciou um tamborilar dos dedos sobre a mesa de mármore da cozinha, depois substituiu pela ponta das unhas pintadas em vermelho, o que conferia um som mais agudo semelhante a uma melodia.

Ele olhou, discreta e rapidamente, suas mãos e unhas bem cuidadas e lembrou-se o quão era vaidosa. Sim, de fato, uma bela mulher, que se fez intervalo durante os anos, mas a amou apesar do seu jeito de ser intervalo. Foram felizes antes do desejo transformar-se em fadiga.

O som das unhas na mesa de mármore foi tudo o mais que se ouviu naquela breve lacuna de uma manhã. Após o último gole do café já frio, ele pigarreou, polido como sempre fora, levou o guardanapo à boca e voltou ao quarto de hóspedes de onde arrastou duas malas consideravelmente cheias de passado e memórias. Deu duas voltas na chave que soaram como um arranhão, devia estar enferrujada a fechadura, abriu a porta e fechou-a atrás de si, sem uma palavra ou qualquer hesitação.

O próximo som que ela ouvira foi o de sua respiração ofegante e o abrir-e-fechar da porta do elevador, o mesmo som que ouvia já há vinte anos, mas, naquele dia, com outro sentido.

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