Aquele olhar

  C038  
Cabecinha de Vento | Nova Lima MG
Faltavam alguns dias para o Natal. Como sempre, eu estava sozinha, consumida em pensamentos insignificantes. Já era mais de uma hora da madrugada, e eu não conseguia dormir. As lágrimas teimosas rolavam pela minha face e não havia uma alma sequer para me consolar. A angústia tomava conta de todo o meu ser e pensei em me matar. Não, isso não! A dor continuava intensa e mais uma vez me veio a ideia de suicídio. Acabo com esse sofrimento de vez. Ninguém vai se importar!

Peguei a chave do carro, abri a porta devagarinho e me encaminhei para a garagem. Lá, bem em frente ao portão, estava você. Não sabia se estava vivo ou morto. Não senti pena, não senti nada, apenas o puxei para um canto para que pudesse passar com o carro. Entrei no automóvel, coloquei em ponto morto, igual a você, liguei-o, engatei a primeira marcha e saí de lá. Não fechei a garagem para não me deparar novamente com você, e segui o meu caminho rumo à ponte dos suicidas. Rodei alguns metros, lembrei que eram vésperas de Natal e que eu não havia feito nenhuma caridade. A consciência pesou, virei o carro e voltei. Você estava no mesmo lugar onde o deixei, só que virado. Está vivo. Levei você para dentro da minha casa, coloquei-o na minha cama e sentei na cadeira de balanço para contemplá-lo. Como era grande e bonito! Fiquei por horas ali, mas você não emitiu um só ruído e nem abriu os olhos.

Amanheceu. O que fazer com você? Estava largado naquela cama como se estivesse morto. O espírito natalino surgiu novamente, e eu chamei um curador. Você não reagia, mas estava ainda com os sinais vitais. Ele o medicou, falou para interná-lo, entretanto não me deu muitas esperanças. Nem sei se queria esperanças. A partir daquela hora, comecei a cuidar de você com toda dedicação. A noite chegou, o dia amanheceu e eu ainda estava sentada naquela cadeira olhando para você que não reagia. Saí por um momento para fazer alguma coisa. Não lembro o quê. Quando voltei para o quarto, você estava noutra posição. Está vivo. Fiquei contente e ao mesmo tempo desesperada. O que fazer com você? Tirei algumas fotos suas e coloquei nas redes sociais. Ninguém se manifestou. Agora éramos somente nós dois. Cuidei de suas feridas, dei-lhe os medicamentos, mas não conseguia acreditar na sua recuperação. Dois dias se passaram sem qualquer reação sua. As feridas estavam se fechando. O remédio estava fazendo efeito. E você, por que continuava como morto? Estava a brincar comigo? Meio sem jeito, sentei ao seu lado e o toquei delicadamente. Você abriu os olhos. Acho que abriu... Não sei. Mas fechou novamente antes que eu pudesse ver como eram.

Coloquei um pouco de soro numa vasilha ao seu lado e saí do quarto. Depois de algumas horas voltei. Notei que o soro estava derramado e os seus olhos estavam me olhando. Não quero que me olhem. Saí do quarto e demorei pra voltar. Estava zangada e não sabia por quê. Fui vê-lo e o encontrei dormindo mais tranquilamente. Assim é melhor. Sentei-me novamente e me pus a contemplá-lo. A natureza foi muito caridosa com você. Agora, limpinho, estava muito mais bonito. Havia lhe dado um banho no dia anterior quando cuidei de suas feridas. Fiquei assim por muito tempo. Acho que adormeci. Quando acordei, ou pensei acordar, você me olhou docilmente como se estive me agradecendo. Fechei os olhos. Acho que adormeci.

Um dia antes do Natal, você andou pela cama e quase caiu. Foi amparado por mim que chegava naquela hora. Seu tonto! Você deitou novamente, mas não parava de me olhar. Não quero esse seu olhar. Sai do quarto e fui ao mercado comprar algumas coisas. Comprei muitas iguarias gostosas para você e muitos presentes. Você merece? Não sei, mas comprei assim mesmo. Logo mais seria noite de Natal e eu precisava ajudar alguém. Fui para casa e o encontrei de pé no meio da minha sala. Você me olhou e, dessa vez, correspondi. Eu não devia, mas correspondi. Você chegou pertinho de mim, olhou-me novamente e parecia sorrir. Quanta loucura! Estava vendo coisas.

Finalmente chegou a noite de Natal. Sentei com você à mesa de jantar e ceamos. Você comeu bastante. Gostou, hein?! Coloquei em você alguns presentes que comprei e o aconcheguei em meus braços. Você era realmente lindo e olhava para mim com ternura. Apaguei as fotos suas que havia postado e resolvi ficar com você. Não queria que ninguém o encontrasse. Dormi como uma criança naquela noite.

Acordei bastante feliz no dia seguinte. Alguma coisa me chamava novamente para a vida. Estranho. Passei as mãos pela cama e não o encontrei. Cadê você? Lembrei-me de que não fechara a porta da cozinha na noite anterior como o fizera nas outras. Levantei apavorada. Fui correndo até a porta e deparei com você em cima do muro a me olhar. Numa piscada minha, foi embora para sempre da minha vida aquele adorável e ingrato gato. Eu não devia ter olhado...

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