O Filho de Montecchio

  C020  
Minna Di Vienna | Novo Hamburgo RS
Era 1982. Não tínhamos ainda um governo novo. Vivia-se ali, no sangue dos que usavam a verde-amarela, a tensão da ditadura. As chuteiras viviam apertadas e era pelos pés dos jogadores de nossa seleção que poderíamos abrandar aqueles nós. Vivíamos um drama social e econômico, mas tínhamos uma copa para se jogar. Crianças faceiras preenchiam seus álbuns com as fotos dos craques. Craques escalados para fazer nascer os gritos de alegria fora do campo.

Naquela copa, jogava-se mais do que bola: jogava-se a arte e a beleza. O calcanhar do filósofo mostrava toda sua técnica e sabedoria. Aquele camisa oito trazia para o campo os belos dribles, o passe perfeito e as finalizações. A canhota forte e precisa do camisa onze, com seu canhão que desacreditava o goleiro, fazia de novo sacudir aquela rede. As barbas do camisa seis colocavam respeito em jogo e conduziam com perfeição a bola. As veias saltadas do bola de prata espelhavam a força dos gritos daqueles torcedores. O camisa dez trazia do Quintino toda precisão dos três dedos em suas cobranças de falta.... Aquela seleção queria mostrar ao mundo como fazer arte com pés e coração. Em calções compridos e pernas longas, apresentavam um dos mais belos espetáculos já vistos dentro de um campo de futebol.

No jogo contra a Itália, o drama dos primeiros gols fora amenizado com os gols brasileiros, mas o último selaria de modo fatal o ato final daquela tragédia. Não foram as madeixas que atrapalharam o goleiro brasileiro nos chutes e cabeceios do filho de Montecchio. Não... nem mesmo o romantismo de Julieta, exalando delicadeza e representando a mestria dos jogadores brasileiros nos gramados do Sarriá, impediu que ele eliminasse em três golpes a beleza do futebol.

O filho de Montecchio desconhecia os objetivos que estava por detrás daquele ato, desconhecia os segredos que eram encenados ao fundo e que retumbavam agora nos silêncios das casas verde-amarelas. A morte era certa. Aquele veneno destilado dos pés do camisa vinte começara a se espalhar pelas veias dos jogadores brasileiros. Pouco a pouco, foram sendo mortificados, apesar do desejo de sobreviver naquela paixão. Como consequência, o veneno fez com que aquela arte perdesse lugar. A poesia fora substituída pela obstinação pelos resultados dos enlaces.

Mas não teria que ser assim? Não fora aquele o destino que colocou em pé o mais autêntico baluarte da esperança? Não transbordaria daqueles gramados a esperança de mudança para uma nação? Era essa a leitura que restara do desfecho da peça: ninguém deveria ficar ludibriado com redes balançando. Desvelava-se assim o que era mais essencial ao país: a democracia, a cultura, o social, a educação.... Gritos em silêncio desejavam um país melhor para se viver. Salve a seleção... questões sociais e econômicas precisavam de resolução. Havia ainda muitos milhões fora de ação e faltava proporcionar melhores condições de vida àquela nação.

Naquele instante, porém, não havia consolo. Em silêncio, alguns permaneciam nas salas onde assistiram a partida. Nas sacadas, via-se Capuletos olhando para o nada. Outros, os Montecchios, também de cabeças baixas, fechavam com vagar suas janelas, pois restara a eles sentimento de que, mesmo com a vitória sobre o rival, algo mais importante havia se perdido. Havia se perdido a beleza. Naquele dramático jogo, o amor não uniu, dividiu. Separados ficaram o filho de Montecchio de Julieta.

Esculpiu-se ali, no entanto, um monumento à elevada arte, não somente no futebol, mas em todos os âmbitos. E ainda hoje, ao vermos belos dribles, bonitas jogadas e nobres projetos de nação, compreendemos que é essa a emoção que buscamos ver em jogo, para que orgulhosos sempre estejamos em vestir a verde- amarela. O final trágico foi necessário para que o romance se mantivesse eterno.

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