10 minutos

  C049  
A Marshall | Jundiaí SPG
10

Seis em ponto.

Quando o sol esbarra no chão, cá estou eu aqui para saudá-lo. A calçada esburacada já viu mais primaveras do que eu, então caminho com a cautela de um trapezista e a sabedoria lenta de um jabuti. O risco de uma queda não incomoda a apressada mão de obra juvenil que se desloca feroz, rumo ao pão de cada dia. Não percebem o belo dente de leão amarelo que ignorou qualquer probabilidade e aninhou-se numa pequena fresta no cimento. Atropelam a flor vencedora como atropelam a presença do mendigo do sorriso desdentado, o vira-lata simpático em busca de um olhar e a nuvem que, por um instante, pareceu uma grande mão branca espalmada no céu.

9

Conversam silenciosamente com uma pequena tela, contemplando uma realidade sintética de presenças invisíveis. Vozes que se acotovelam em redes sociais sem nada a dizer. Uma jovem de mochila azul nas costas vê o vibrante ipê roxo em seu caminho e dispara uma foto. Abre mão de viver aquele momento majestoso em troca de registrá-lo em uma imagem opaca, que vai se juntar a uma infinita pilha de momentos opacos, perdidos e jamais revisitados. Talvez essa obsessão por eternizar cada segundo seja o sintoma de uma síndrome que ultimamente também está no meu encalço. O medo do esquecimento.

8

Desde a chegada de um tal alemão com nome de cerveja que estou brigando com minhas memórias. A doença te joga num vazio que te faz agarrar-se a cada instante como se fosse único, mas os benefícios param por aí. Na maior parte do tempo estou tentando recompor alguma agenda do dia ou adivinhar o nome de algum neto maledeto. Se o que devo fazer é importante vou e faço, pois sei que dez minutos depois a coisa complica. O jeito que encontrei de definir prioridades foi anotá-las num diário. No segundo dia já havia trinta páginas com anotações, senhas de banco, compromissos e números de telefone. No terceiro o perdi e nunca mais achei.

7

Parei de brigar com as ideias recentes e me recolhi no passado. Parece que a situação por lá anda mais estável. A nostalgia é uma droga perigosa, mas que às vezes alivia a dor das dúvidas que o presente nos impõe. Fujo para terrenos baldios por onde pés descalços se embrenhavam, ignorando riscos e conselhos maternos. Estilingue em punho, os bolsos abastecidos de mamonas e os olhares atentos, buscando qualquer rolinha menos “ariça”. Não havia telas com GPS e nem monstrinhos japoneses. Preciso admitir que a arena de hoje em dia é mais ecológica e menos cruel. As rolinhas agradecem.

6

Mas a vida tinha mais polpa. O medo aleijava menos e calejava mais. Os riachos tinham peixes e o leite era A, B ou C. Dependia da sua renda. O tempo nivelou as vacas e levou embora a glória que era saborear um leite A, quando se era da turma do C. O mundo tinha menos gente, mais espaço e mais pipas no céu. Farmácias tinham Ph no nome, os invernos sabiam o que era frio e os peões giravam com gosto, convencidos de sua soberania na caixa de brinquedos. Os guarda-roupas tinham só duas portas e duas gavetas, e sobrava muito lugar entre o terno da missa e um par de camisas. Tempos de uma escassez que nos cobria de necessidades reais e nos ensinava a querer direito e agradecer por pouco.

5

Tudo muda e as mudas se engrandecem, tornam-se árvores. Os potros viram corcéis e os meninos, velhos embriagados pela solidão.

4

Na escalada exponencial que a modernidade nos impõe, é fácil se tornar obsoleto sem o perceber. Uma peça de antiquário resmungando verdades que não interessam a mais ninguém. Mas quando a realidade parece perder seus alicerces, tudo o que nos resta é gritar com o máximo de ar que o velho peito ainda suporta. Gritar palavrões e gerar discussões.

3

Num mundo de verdades líquidas, não se ter uma opinião é o pior dos argumentos.

2

A vida é assim, uma estrada que judia, mas parar a marcha enferruja qualquer junta. Vou esperar mais alguns minutos por aqui e tentar lembrar-me de onde estou e como faço pra voltar pra casa.

1

Enquanto isso, reparo na calçada esburacada que já viu mais primaveras do que eu. Caminho com a cautela de um trapezista e a sabedoria lenta de um jabuti...

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