Uma máscara

  C062  
Amiel | Milão IT
Queria-me um homem do mundo, sabendo jogar, vestir-se, beber, falar às mulheres; mas as sombras e as nuvens começavam a invadir-me a alma, apesar daquela vida brilhante. Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo; sentia também que não me parecia com nenhum outro, que não era capaz de me soldar a nenhum e que, desajeitado para me adaptar, era incapaz de tomar posição, importância e nome. 
(Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha).

Quero uma máscara. Todo homem tem uma máscara. Mas a mim nunca ofereceram uma. Acaso sou menos humano? Estou cansado. Cansado de não ter uma máscara, de exibir impudicamente meu rosto – abjeto, mestiço, corado  – diante das tão alvas máscaras dos outros. Se pudesse rezar, pediria a Deus, numa oração contrita, que me desse uma máscara. Assim eu seria eu mesmo. A máscara transmutar-me-ia naquilo que sempre fui: a constante e desesperada busca pelo que sou.

Mas não, não tenho uma máscara. Os deuses ma negaram. Pergunto aos amigos: “acaso não tendes aí uma máscara sobrando?”. Eles têm muitas, mas dizem que não. Guardam-nas para si mesmos, avaros de suas muitas faces. Pensam que não mereço, que não sou digno. Eu, logo eu, o mais digno de todos. Se soubessem o mal que me fazem. Todos eles, deuses e amigos. Se soubessem o que tenho sofrido. Tenho aguentado tudo em silêncio. E tudo por não ter uma máscara. Por não poder comprar uma no mercado. Por não achar uma máscara jogada num lugar qualquer.

Busco o espelho e não encontro nada. Às vezes passa ali um vulto indefinível, e creio ter visto meu pai, diáfano como só as almas do outro mundo o são. Grito: “pai, por que não me deste uma máscara?”. O grito ecoa pela casa sem móveis. O vulto desvanece e vejo o espelho vazio. A vida inteira tem sido um espelho vazio esperando por longas horas para refletir um rosto que não tenho.

Sou um bufão parado no centro de um grande palco iluminado. Há a plateia: silenciosa, atenta, pigarreando à espera do início do espetáculo. Abrem-se as cortinas e percebo-me nu, desmascarado. Sinto a inquietação do público: cochicham e sorriem maliciosamente. Eu tremo, empalideço, sinto que se me foge a alma. A qualquer momento, uma potente vaia romperá aquele silêncio e será a humilhação. Arrastarei então os cacos.

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