Os milagres dos Campos da Ermida

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Órion XVII | Divinópolis MG
Dezenas de pessoas presenciaram o lançamento da pedra fundamental da grande Cruz do Espírito Santo de Todos os Povos, em 24 de dezembro de 2016, sem saber que está para se concretizar mais um dos “milagres” que marcaram a região dos Campos da Ermida, nos séculos XVIII ao início do XX, e que tinham como referência o morro da Gurita.

No passado, nesse mesmo lugar, foi erguida uma guarita, provavelmente em 1738, na retificação dos limites territoriais da Vila Pitangui diante da primeira entrada da bandeira da Picada de Goiás, no ano anterior, ligando as vilas de São João del-Rei às jazidas de Paracatu.

A guarita branca sobressaía-se no topo do morro. Era uma pequena construção padrão do tipo paiol militar retangular feita de madeira e adobe revestida de tabatinga por fora e por dentro, coberta de telhas e com beirais. Assentada sobre firme alvenaria de pedras, era circundada por um muro baixo de pedras secas (parte ainda existente), um pequeno pátio de chão batido e um cruzeiro. Seu portal estava voltado para o Nascente. Ficava em elevação estratégica dos campos das serras da Conquista (dos Caetanos, hoje) e Perobas, podendo ser vista a olho nu a longa distância.

A partir de 1744, na revisão dos limites dos Termos de Pitangui (comarca de Rio das Velhas) e São José del-Rei (comarca de Rio das Mortes) – em razão da criação do arraial de São Bento do “Tamandoá”, a gurita já era mencionada como ermida. O termo remete a um templo simples sem vinculação eclesiástica ou paroquial, localizada em campos e serras, caracterizada por um alto cruzeiro lateral e um orago interior, onde rezavam ou permaneciam temporariamente diferentes agentes públicos e viajantes.

Nessa década, os jesuítas perderam o prestígio da corte portuguesa e acabaram sendo banidos da colônia pelo Marquês de Pombal (reinado de D. José I), o que propiciou a entrada dos ermitões de São Francisco de Paula (Ordem dos Mínimos/OM), nas regiões isoladas da colônia, sob estímulo da rainha D. Mariana Vitória, princesa do Brasil.

A partir dos anos 1750, os ermitões propagavam o ideal evangélico de humildade, penitência (quaresma perpétua), caridade e oração, e deixaram vestígios em inúmeros lugares no Brasil, ao longo dos dois séculos seguintes, antes de se instalar oficialmente, em 1955, no Rio de Janeiro.

Além de São Francisco de Paula, pequenas estatuetas de Santa Helena, Santo Antônio e São Sebastião foram deixadas naquele altar singelo e ali permaneceram alguns anos, antes de tomarem rumos diversos.

Inúmeros milagres foram atribuídos a orações no local, o que fez da ermida referência geográfica, registrada pela Câmara de Pitangui, a partir de 1754, como Campos dos Milagres da Ermida, outras vezes como Ermida dos Milagres de Campos, outras ainda apenas como Ermida dos Campos.

Ainda está mantido pela oralidade dos campesinos pioneiros que muitas situações e acontecimentos inexplicáveis marcaram beneficamente as primeiras famílias daqueles campos, entre os quais se destacam as conversões radicais de Francisco Ferreira Fontes, famoso capitão-do-mato, conhecido por sua bravura e crueldade com os escravos capturados, ao final dos anos 1759; e do fazendeiro major João Ferreira da Silva, homem hostil e violento, ao final dos anos 1820, que se tornaram pessoas generosas, caridosas e libertadoras de escravos, que se mantiveram como camaradas em suas fazendas.

Contam descendentes de fazendeiros antigos da região, citando avós do sec. XIX, que, em algumas épocas de secas e de chuvas prolongadas, os moradores se reuniam na ermida com suas devoções e faziam procissão de retorno, descendo sob chuvas ou com estio, conforme era o desejo coletivo.

Com os desgastes do tempo e a formação de povoados na região, a ermida ficou ao abandono, mais ainda após a pequena estátua de São Francisco de Paula ser entronizada na capela da “passagem da Itapecerica”, com autorização do Bispado de Mariana, em 13/01/1767, e o apoio de 50 famílias da região.

As outras imagens foram recolhidas por devotos e reapareceram mais tarde, ao início do séc. XIX, no orago de Santo Antônio e São Sebastião, construído pelos fazendeiros Duarte Caetano Ribeiro, Manoel José Pereira, Marcolino Francisco Clementino e José Pinto Caldeira. Na fazenda deste, Olhos d’Água, realizou-se a primeira festa de Santo Antônio, em junho de 1830.

A imagem de Santa Helena ainda ficou por anos no local, até que outro “milagre” de conversão acontecesse.

O severo major João Ferreira da Silva, certo dia, andando por suas terras, subiu o morro e deu com a ermida no alto, em ruínas, e lá dentro ainda a pequena estátua de Santa Helena.

Consta que, após descer do monte, levando a imagem e um castiçal, o major passou a noite a refletir sobre sua agressividade e intolerância e, na madrugada, tomado por dores lancinantes e arrependimentos, sofreu profunda transformação espiritual. Ao amanhecer, já sem dores, percebera que uma profunda mudança havia ocorrido em sua vida.

Meses depois, em 1833, após passar mais de ano com os missionários lazaristas do Caraça, o major voltou com a ideia de construir uma réplica da ermida em sua fazenda. Com apoio do padre Felício Flávio dos Santos, com ajuda de seu filho Evaristo Ferreira e participação espontânea de escravos, fazendeiros vizinhos, o major desmontou o que restara da ermida do alto e a reconstruiu no local que, depois, passou ser conhecida por capela do Lavapés. Isso porque, desde então, o major fazia questão de repetir, anualmente, na Semana Santa, o ritual católico de humildade (“lava-pés”) com seus escravos libertados.

De se destacar, é que na reconstrução da ermida preservou-se o portal azul, ainda instalado nessa capela dedicada a Santa Helena.

A ermida do monte da Gurita não existe mais, mas a irradiação de paz e liberdade, a elevação espiritual e o desenvolvimento humano, marcantes na sua trajetória, continua se expandindo. Sobre suas ruinas se erguerá a Cruz do Espírito Santo de Todos os Povos, enquanto se presencia um novo momento de renovação dos Milagres dos Campos da Ermida.

Por esses motivos sobrenaturais, quando nos perguntarmos porque foi escolhido esse local para o cruzeiro luminoso de 73,8 metros, temos aí também uma justificação histórica e mais um “milagre” da Ermida dos Campos que se replica, ao início do séc. XXI.

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