C086
Romântica | Salvador BA
“Teus olhos são olhos d'água que se derramam em meu caminho...”
Levantara-se cedo. O jardim recém molhado pela chuva da madrugada rescendia a terra e flor. Decidira sentar-se no banco sombreado pelo velho flamboyant. Queria reler o livro após tantas buscas encontrado. Ao folheá-lo, encontrara aquela página escrita numa caligrafia que, de pronto, não identificara. E, antes que continuasse a leitura o vento arrebatara-a de suas mãos. Com um incômodo sentimento de perda, viu-a voltear sobre os canteiros, ultrapassar o muro e sumir pela estrada. Não adiantaria mais tentar alcançá-la. E ficou a imaginar o enigma que teria a decifrar quem por ventura a encontrasse.
Voltou a atenção para o livro em seu colo: a capa dura não fora obstáculo para os caminhos abertos e percorridos pelos cupins. Sorte que o conteúdo do texto não chegara a ser afetado, assim como a folha misteriosa que se perdera. Quem a teria escrito? Tentou repassar na memória amores findos e não encontrou nenhum poeta ou trovador. Cancioneiro houve alguém, mas não se lembrou de nenhuma canção que começasse com aquela frase. Seria de algum admirador desconhecido que não se revelara e o mistério perdurava desde ... quando? Divertia-se com essas conjecturas, esquecida da leitura planejada.
O sol esquentando instigou-a a focar o texto. Lentamente, o enredo delineava-se cansativo, incapaz de estimular o seu interesse. Insistiu: algo aproveitável deveria descobrir ao longo das páginas. Nada aconteceu. Surgiu a dúvida: desistir da leitura ou ir até o fim? Quebrou-se o encantamento daquele livro. Investira tanto afeto naquele troféu fantasiando que o seu valor seria permanente e, então, percebia que o texto não respondia mais às suas expectativas: sua cabeça agora era outra! Guardaria o livro como uma relíquia, porém, destituído do poder mágico das recordações da infância. Pensativa, levantou-se para retornar à casa.
E o livro ficou esquecido sobre o banco do jardim...