Não me venhas com histórias

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NZola | Queluz PT
Às vezes a preguiça toma conta de nós e a criatividade fica reduzida a poeira quando nos apercebemos de que o mundo à nossa volta está cheio de histórias por contar. Elas já existem, só precisam de ser transpostas para palavras e ligadas por algumas estruturas gramaticais básicas e pequenos recursos formais. Contadas, escritas ou ditas, essas pequenas novelas da vida real, às quais acrescentamos algumas mentiras estratégicas, transformam-se em ficção e, em função da sua dimensão, podem muito bem vir a ser chamadas de contos.

Todas as civilizações os conheceram, e até hoje merecem a preferência e o interesse de muitos leitores, embora ocasionalmente as editoras torçam o nariz ao género, que classificam de pouco comercial, porque massificado e também porque parece, (erradamente, a meu ver) estar ao alcance de qualquer um. Para muitos um escritor de contos é tido como um romancista fracassado, cru ou incompetente, ou alguém que ainda não atingiu a maturidade necessária para escrever “um livro a sério”. Uma amiga que muito prezo, e que me permito citar porque, por um lado, tenho a certeza de que não me lê, e, por outro, creio que será responsável pelo sucesso que me aguarda algures, disse-me um dia:

— É pá, tu escreves mesmo bem.

Precipitei-me a agradecer-lhe, tartamudeando algo, emocionada, antes de ouvir a conclusão do seu raciocínio: — Qualquer dia tens que escrever um livro!

Fiquei a matutar sobre tão surpreendente recomendação, pois na altura contava já, no meu modesto currículo literário, com duas compilações de poesia e um pequeno livro de contos associado à obra de uma artista plástica. Um “livro” é um romance, a consagração máxima de um autor (se não for um fiasco); e mesmo que o seja, em termos de estrutura, conteúdo ou estilo, que é o que me interessa como leitora e autora, poderá sempre ser bem-sucedido comercialmente se forem acionados os botões certos e se fizer uso adequado dos lobbies que entretanto se criaram, dentro de uma conjuntura favorável. Escrever um livro… seria então o próximo passo, gigante, quase inalcançável, quiçá o projeto de uma vida.

Outras vezes perguntam-me se escrevo contos infantis. Diante da minha negação, ouço então:

— Ah, então são contos para…

— Para adultos — (e cheguei a dizê-lo algumas vezes). Mas não volto a cair nessa armadilha pueril, pois na verdade a palavra “adulto”, um termo tão inocente como qualquer outro, está muitas vezes conotado neste contexto com literatura erótica, e uma resposta como esta pode deixar o potencial leitor desinteressado, desconfiado, intrigado, ou, pelo contrário, verdadeiramente expectante.

Alguns dos autores que admiro e que me influenciam fortemente, dos clássicos aos contemporâneos e das mais diversas latitudes e espaços linguísticos e culturais, tornaram-se romancistas que, embora possam ter publicado contos com abundância nas épocas em que fizeram escola, passaram a ser conhecidos sobretudo por via do romance; só depois os seus contos vieram à tona, assim como todos os textos que porventura não conheceram o mesmo sucesso na altura — quando o autor passa a ter um valor acrescentado (por um grande incremento de vendas ou por ter sido distinguido com um prémio de grande visibilidade), o público é arrastado pela simples menção do seu nome.

A narrativa longa é muito exigente: ela pede, para além dos requisitos básicos esperados de todo aquele que escreve, originalidade, disciplina, constância, alma, rigor, paciência, pesquisa, ânimo e um objetivo, como aliás, muitos projetos a longo prazo. É preciso não perder o fio à meada, tomar notas pelo caminho, estruturar famílias e ideias, fazer o devido enquadramento histórico e geográfico, quando necessário, não entrar em contradição, manter a coerência e a expectativa. E o cumprimento de todas estas pequenas fórmulas não garante que um romance seja bom, apenas evita que seja completamente descartável e desagradável de ler. Depois temos que ter uma boa história, e todos os autores são cães de caça treinados para farejá-las e persegui-las, quer sejam reais, fantasiadas, ou um misto de ambas.

Voltando ao conto, confesso que é um género que me preenche e me satisfaz plenamente como leitora. Desde o micro-conto (e conheço alguns autores exímios nessa arte como o Edweine Loureiro ou o Rodrigo Dommit, autores brasileiros contemporâneos) ao conto tradicional ou inspirado no folclore: os contos africanos e asiáticos fizeram as delícias da minha adolescência e mais recentemente voltei a ter contacto com este subgénero pelas mãos da cabo-verdiana Helena Centeio, hábil contadora de histórias que compilou uma série de contos tradicionais da Ilha do Fogo, transmitidos oralmente de geração em geração, neste caso pela sua mãe. (Tão cedo não esquecerei a história da lebre e da tartaruga na sua versão tão divertida e avessa à moral puritana!).

Lê-se no comboio, no metro, no avião e na sala de espera do dentista; o conto anda connosco na carteira para todo o lado. Que o digam a Carlota de Barros, a Dina Salústio, a Vera Duarte, o Rui Freitas, a Olinda Beja ou o Albertino Bragança, o Germano Xavier, o Danny Spínola…, que já andaram comigo em formato A5 ou no ecrã do meu aparelhómetro por este Portugal adentro (e fora dele), numa estação ferroviária, numa mochila de viagem, ou mesmo numa mesa-de-cabeceira junto ao soro fisiológico e aos brincos de pechisbeque. Ultimamente descobri estes novos autores (na verdade eu é que sou uma nova leitora, eles apenas são novos nas minhas preferências!), prosadores, com quem tenho privado algumas vezes, e por isso não tenho apenas uma visão do que escrevem mas de como escrevem, de como são e de que massa são feitos, pelo menos publicamente.

Tenho igualmente, desde a infância, uma relação muito próxima com a narrativa breve: de Grimm a La Fontaine, como muitos de nós, mais tarde Uanhenga Xitu e Luandino Vieira e depois Pearl Buck, Pirandello, Alan Poe, Musset, Mia Couto, Cortázar, García Márquez, Alejo Carpentier, portugueses e brasileiros, ilhéus e continentais, africanos e europeus, sobretudo. Eça de Queirós, sempre, e Millôr Fernandes, no género humorístico-filosófico. Fico satisfeita por perceber que, de maneira totalmente espontânea, hoje em dia leio muito mais mulheres; será que alguma coisa está a mudar no universo das Letras?

Muitos mestres ficarão por citar, e injustamente, levando a confundir desatenção e memória fraca com ingratidão, pois são tantas e tão variadas as minhas preferências neste género que é quase impossível lembrar-me de todos os que fizeram de mim a leitora que sou, em desenvolvimento, e continuam a fazer parte da minha vida, tendo-me dado muito mais do que o valor comercial dos livros que alguma vez paguei.

Nem todos os contistas chegarão a conhecer a glória, pois o tempo de uma vida é restrito e nem sempre chega para fazer-lhes justiça. Outros artistas sucumbem à mesma sorte: as exigências do quotidiano acabam por empurrá-los para longe da arte, por mais talento e empenho que tenham.

Quando penso em narradores penso ainda em griots e griottes, que fazem da arte do conto um modo de vida; refiro-me aos contadores de histórias, de várias zonas de África, cuja missão era preservar e transmitir o conhecimento oralmente. O conto tem também outras aceções curiosas, que aparecem em variadíssimas expressões idiomáticas. Os hispanofalantes conhecem a expressão “no me cuentes cuentos”, ou ainda “un cuento chino”, que se supõe ser um embuste, uma mentira disfarçada de artifícios, segundo a interpretação da R.A.E., ou seja, um enredo ardiloso. (Já “Dejarse de cuentos”, que significa, coloquialmente, pôr de parte os rodeios e ir diretamente ao substancial, é algo que pessoas como eu preferiam não ter que ouvir, declinado no modo imperativo).

O conto, pelo menos na língua espanhola, estaria portanto associado à impostura, aos preâmbulos, aos ardis. Mas a ficção é, felizmente, toda ela construída com recurso a essas ferramentas, incluindo a narrativa curta. Não me peçam, por isso, que “me deixe de contos”: se o fizer, pouco mais tenho a oferecer-vos.

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