Meu Presidente

  C013  
Pixote | Araçatuba SP
Início da década de 1960...

A pequena vila, acanhada, era quase estéril de empregos. Afora os pequenos sitiantes e comerciantes, o resto lutava só Deus sabe como... Mas tudo era mais fácil, visivelmente mais fácil que hoje. É bem verdade que a comida não era tão diversificada como agora, mas existia a fartura. Em quase todas as casas podia-se ver uma horta ampla, um chiqueiro apinhado de crias, galinhas aos montes, sem contar as frutas! A gente comia até se fartar, e não havia a menor preocupação com a sobrevivência futura, como hoje. Não sei se isso, se essa despreocupação estava só com as crianças, e ficava para os adultos a angústia do “como fazer?”. Acho que não... As pessoas eram leves, não mostravam tensão. Eram falantes, alegres, maravilhosamente solidárias. Tempo bom! Sadio nos costumes e nas amizades!

Em casa, minha mãe, viúva, com uma penca de filhos... Éramos assustadoramente pobres, quase sem perspectivas, mas comida não faltava. Do quintal vinha muito do nosso sustento. Comum era a troca de verduras e legumes com os vizinhos. Não me sai da lembrança o caramanchão de chuchu de Dona Eulália. Imponente, fecundo! Erguido próximo ao batedouro de roupas, alimentado com água em abundância, produzia o ano todo!

Todos nós trabalhávamos. Minha mãe fazia salgados para os bares, meu irmão era metido a eletricista, o outro era balconista da Casa Pereira, a única loja de tecidos da vila, e assim por diante... Eu, caçula de sete anos, defendia o meu com uma caixa de engraxar. Tempo bom pros engraxates! Todo mundo usava sapatos de couro. Ainda não havia surgido a febre do tênis. Bom mesmo era engraxar botinas! O cano alto permitia cobrar mais caro pelo serviço. Justificável, não?

Na praça da igreja, pela manhã, eu tinha o melhor ponto. Cedo, com o sol ainda fraquinho, os velhos se juntavam nos bancos para uma prosa gostosa, e ali eu fazia a minha clientela. Quando o sol esquentava, e até que chegasse a hora de ir para a escola, ficava difícil. Era raro encontrar um ou outro freguês pelas ruas. De vez em quando conseguia algum na barbearia. Mas, decididamente, não era vantajoso esperar.

Achei uma saída espetacular! Ia engraxar em domicílio! Passava pelas casas e assim engraxava os sapatos da família inteira. Com o tempo consegui organizar uma clientela fixa, e com isso tinha trabalho de segunda a sábado. Já sabia que na segunda- feira engraxaria na casa do Seu Dorival, na terça na casa do Seu Duílio, na quarta na casa do Seu Osório... Adorava as sextas-feiras! Verdade mesmo! Nesses dias eu nem passava pela praça. Ia cedo para a casa do Seu João. Sujeito incrível! Meu ídolo! Gostava tanto de conversar com ele que fazia meu serviço lentamente, com esmero excessivo. Nunca lhe sujei as meias! Alongava minha tarefa ao máximo para poder ficar mais tempo ao lado dele. Como era sábio!

Sempre que eu chegava, um farto café da manhã me esperava. Até queijo eu comia! Parecia mais um banquete! Nutria um carinho especial por mim... Acho que era mais um caso de simpatia recíproca, de empatia, de encaixe completo. Aquela velha estória de panela e tampa... Era mais que isso! Era uma afinidade tamanha, tão intensa e profunda, que fazia o tempo voar, que alimentava a minha alma! Homem de seus cinquenta e tantos anos, muito calmo, costumeiramente vestido em terno de casimira ou de linho bem amarrotado, os cabelos sempre lustrosos, recendendo à brilhantina. Mãos grandes, com as unhas sempre bem aparadas, e trazia no dedo anular um largo anel de ouro com uma imensa pedra de rubi. Uma figura marcante, sem dúvida alguma!

Seu João era meu chapa! Sempre que falava comigo, com aqueles olhos de raios-X, não hesitava em demonstrar seu afeto e me fazer um agrado. Às vezes fico pensando se eu não encontrava nele aquele pai que eu havia perdido?! Sei lá... Só sei que ele era muito importante pra mim! Guardava as suas palavras como um registro, e as ficava matutando à noite, antes de dormir. Entre tantas coisas que me passou, guardo claramente e com saudade as suas aspirações. Apesar de toda sua sabedoria, não se aprofundara nos estudos. Deixava claro em suas conversas o desalento desta proeza irrealizada. Queria ter sido engenheiro! Mas, entremeado pelas peripécias que a vida reserva a todos, não passou do quarto ano primário. Foi pra luta, trabalhou muito, e tornou-se cartorário. Aliás, profissão que levou até o fim da vida!

Mas o que mais me empolgava mesmo, era a sua campanha política. Conversava horas e horas, comigo, sobre isso. Estava se preparando para ser Presidente da República! Hoje sei que só falava disso comigo, é claro! Falava sobre suas estratégias políticas, seu plano de governo, da escolha e da preparação de seus cabos eleitorais… Juro! Desejava ser um deles! Eu me sentia tão envolvido com suas ideias, que queria que os dias voassem para que eu me tornasse mais velho e pudesse chegar a ser um cabo eleitoral dele. Verdade! Era até capaz de fechar os olhos e me imaginar com as mãos cheias de “santinhos” com o retrato dele, e com bandeiras trazendo o “slogan” de sua campanha. Sabe como ele me “comprou” nesta campanha toda? Com seu plano de mudar o calendário. Afirmava, e isso acontecia sempre que nos encontrávamos, que quando fosse Presidente da República mudaria completamente o calendário. Não haveria dias comuns da semana. Nada de feira, feira, feira... Só existiriam o sábado e o domingo. E mais ainda, o calendário escolar seria invertido. No período das férias teríamos aulas, e o período das aulas seria transformado em férias! E não era pra eu me empolgar? Estudar só três meses por ano? Inacreditável! Seria a glória! Daí o meu interesse pela campanha e pelo meu ídolo. Ele era o máximo! Quantas ideias maravilhosas! Como eu o admirava!

Hoje, com os meus cabelos brancos, rememoro tudo isso e chego a ter ataques de riso quando penso em algum detalhe particular daquelas nossas conversas. Propostas utópicas! Devaneios... Sandice pura! O pior de tudo é que eu procurava passar essas ideias adiante! Dentro de minha ingenuidade e afoiteza, propagar esta campanha era primordial! Em casa falava com minha mãe, com meus irmãos, com os vizinhos. Na escola, falava com os meninos. Mas ninguém me ouvia. Ninguém se empolgava... Cheguei até mesmo a pensar que o ideal seria levar todas essas pessoas até a casa do Seu João, assim ele mesmo exporia suas ideias e seu programa de governo. Quem sabe assim, as pessoas se motivariam! Que nada... Ninguém queria me ouvir... Quando dava por mim, falando pelos cotovelos, entusiasmado com a campanha, estava sozinho. As pessoas davam-me as costas, e eu ficava pregando no deserto. Achava-as tolas, desinteressadas, burras mesmo! Afinal, não davam ouvidos a ideias de vital importância, a planos que mudariam totalmente suas vidas! Seria uma guinada de cento e oitenta graus! Bobagem… Inútil tentar convencê-las... Eu me sentia mais triste ainda porque percebia a minha incompetência como cabo eleitoral. Nunca poderia ser um deles! Não conseguia convencer ninguém! E foram muitos meses assim, anos até!

De repente, a voz do “Meu Presidente” se calou. Não falava mais... Nem comigo, nem com ninguém. Ficou triste, abatido. Nem engraxava mais os sapatos! Também, não os usava! Só calçava chinelos e quase não andava. Só que uma alegria eu ainda sentia. Não ouvia a sua voz, mas seus olhos me falavam. Seu jeito de me olhar ainda era o mesmo. Transparecia amor, carinho, cumplicidade. Eu ficava tempo ao lado dele, sentado em uma cadeira no canto do quarto. “Meu Presidente” estava muito mal. Eu não sabia bem o que lhe acometia o corpo, mas percebia que estava chegando ao fim. Ao fim da campanha, ao fim da proeza, ao fim da vida.

E o agosto terrível chegou...

Levou, com seus ventos mórbidos e angustiantes, a vida do “Meu Presidente”. Velho amigo! Meu timoneiro!

Sempre que passo por aquela rua, olhando aquela varanda, vislumbro a sua imagem no mesmo traje de linho, com aquele sorriso zombeteiro, com aquele olhar afetuoso, e com a mesma imponência do “Meu Presidente”.

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