Dos amores divididos e multiplicados

  C011  
Moleca Sapeca | Araçatuba MG
Arroz, feijão, mexido de ovo e farofa de torresmo.

Tudo misturado, amassado. Isso era feito dia após dia, sempre nos mesmos velhos e descascados pratos de ágate. Cada neto era servido com esse manjar dos deuses, carinhosamente temperado de generosidade, doação, amor.

A avó compactava a comida no círculo central de cada prato, borrifava algumas gotas de limão-cravo, e com a lateral do garfo fazia uma cruz no centro, dividindo a porção em quatro partes. Dizia que cada parte era dedicada a um dos quatro grandes amores da vida: mãe, pai, avó e avô.

E, comprometidos com esses amores, cada um de nós escolhia a parte mais amada para iniciar a refeição. Quase sempre a sequência lógica prevalecia: mãe, pai, avó e avô. Raras vezes essa harmonia era quebrada, e quando isso acontecia nem precisava investigar: havia uma surra atrelada a isso. Uma surra dada ou uma surra prometida. Se bem que isso era muito particular. Se havia alguma inversão, ninguém comentava. Acontecia dentro das cabecinhas. Sei que acontecia isso porque inverti algumas vezes.

Enquanto comíamos, a avó, de longe, sempre atarefada com a lida da casa, cautelosamente controlava a nossa alimentação. Era comum ouvir:

— Quem já comeu uma parte? Didi, você está sem fome? Lúcia, a comida não está boa? Faltou sal?

Ela sabia que a comida estava sempre boa. Nunca faltou sal e nem sobrou. Nunca errou a mão em nada. Ali estava o amor mais saboroso que uma criança poderia receber. Era uma cumplicidade de afetos tamanha que espantava qualquer insegurança, qualquer medo, qualquer tristeza. Era um porto seguro.

Com o passar do tempo, fui percebendo que naquela divisão faltavam partes. Havia mais dois amores a serem colocados ali, no meu prato. Meu irmão e minha irmã.

Então, sem alarde, comecei a repartir as porções do pai e da mãe, de modo a serem quatro. Ali estavam os dois que faltavam. E eu ficava feliz assim...

Fiz isso por algum tempo sem ser notada. Quero dizer, pensando não ser notada. Imagina se isso seria possível! Nada escapava da tenência sempre zelosada avó. E um dia, enquanto eu multiplicava as minhas divisões, ela aproximou-se de mansinho e, com aquele olhar que jorrava ternura, me disse:

— Existem outros amores, não é mesmo, menina?!

Depois do susto, sentindo o afluxo do sangue ruborizando o meu rosto por perceber que ela havia descoberto o meu feito, e não querendo que ela se sentisse afrontada pela minha iniciativa, prontamente coloquei-me de pé. E ela, no intuito de me tranquilizar, passou as mãos pelos meus cabelos e, com a maior serenidade do mundo, me disse:

— Ao longo da vida, minha neta, você irá encontrar muitos amores. Alguns serão somados, outros nascerão... Serão tantos, mas tantos, que não caberão nem no maior prato do mundo!

E ela estava com a razão...

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