Um bom pai ruim

  C070  
Jonas Leite | Feliz RS
Na ânsia de ser um bom pai, trabalhava trocentas horas por dia. Tinha que ter um carro mais confortável e mais seguro, com quarenta e sete air bags. Também era aconselhável aumentar a cobertura do plano de saúde e a área coberta do pátio. E sonhava com uma cobertura num bairro melhor.

Quando ele saía, a filha ainda estava dormindo e estava escuro lá fora. Quando ele chegava, a filha já estava dormindo, pois estava escuro lá fora. Fazia isso prevendo os gastos futuros e preocupado com a carestia do açougue.
A primeira palavra que ela mal soou foi papá, em referência ao seu papai. A mulher, faceira, assim contou. Ele só foi ouvir a deferência quando a filha falava pela centésima vez a palavra recém-aprendida.

Ela engatinhou algum tempo, antes de conseguir dar seus primeiros passos incertos. O pai, contudo, nem percebeu a filha se arrastando de gatinho. E não foi nele em que ela se apoiou nas suas primeiras ousadas tentativas de bipedismo.

Quando ele pensou em contribuir com alguma ideia, a festa de um ano já estava organizada. Lhe coube somente a entrega de convites, os quais esqueceu dalguns.

Talvez ele, sentimental velado, tivesse marejado os olhos contidos na vez em que a pequena foi deixada sozinha na escolinha, no seu primeiro dia de aula. A mãe passou o turno com um irreversível sentimento de culpa por ter, palavras dela, abandonado a criança à própria sorte. Mas ele estava trabalhando na ocasião. Não pode consolar a esposa ou encorajar com um abraço a pequena. Havia saído bem antes. Era ainda escuro lá fora.

Também pouco contribuiu com a festa de quinze anos. Chorou na valsa mal dançada, pois não teve tempo de ensaiosembora discordasse que apresentava uma filha já adulta à sociedade. Era ainda a sua bebê picurruxa, embora uma rebeldia adolescente.

Foi esse mesmo argumento que usou quando ela levou seu primeiro namorado em casa. Ela lembrou que já estava com dezessete. Ele a mirou incrédulo. Como com dezessete se nasceu há pouco mais de mês e meio? Ele se lembrava como se fosse hoje da ocasião do nascimento quando, em folga do trabalho que lhe tornava um bom pai até ajudou no parto humanizado.

Tempo depois, a filha já comprava o presente do Dia dos Pais com o próprio salário. Ele agradecia, mas a julgava explorada num trabalho infantil.

Ela bacharelou-se e ele não teve tempo de acompanhar sua rotina acadêmica. O mesmo que ocorrera no Ensino Fundamental e Médio, quando era um ausente assíduo das reuniões de pais. Depois, casou-se com um bom rapaz, embora ele julgasse que a filha ainda não tinha idade.

Quando ela lhe abraçou extasiada, sussurrando ao seu ouvido que estava de dois meses, ele tentou esconder uma impertinente lágrima. E desejou em conselho que a filha não fosse uma mãe tão boa como ele havia sido um bom pai.

Blogger | Mod. Ourblogtemplates.com (2008) | Adaptado e editado por Flávio Flora (2018)

Voltar