Eu quero a panela grande

Luisa Clara Cartaxo Fresta | Queluz PT
L'esprit cherche et c'est le cœur qui trouve
(Georges Sand)
*

Um dia eu andava aflita por não encontrar um título para o meu texto. Seria aceitável se o texto já existisse, ou se pelo menos eu tivesse pensado num tema ou num facto sobre o qual me quisesse debruçar. Mas acontece que ainda não tinha uma única linha escrita, nem fazia a menor ideia de como começar. Convenhamos que começar é a parte mais fácil.

Desenvolver uma história completamente vazia de sentido e de conteúdo e terminá-la com um bom remate é o grande desafio. Um exercício de estilo, inócuo, transparente, apagado e superficial, mas, se o conseguirmos, a sensação é a de pisar o pódio. É uma pequena provocação também. Conseguirá o leitor passar da segunda linha? Estaremos então perante o triunfo da futilidade sobre a realidade e o palpável, o devaneio entediante imperando soberbamente sobre a pujança do quotidiano.
Então, continuando, deixem-me precisar que não sofrera à época qualquer pressão para escrevê-lo. Nenhum chefe de redação ou editor-chefe a morder-me as canelas, nenhum prazo para cumprir; tampouco existia qualquer imposição de quem quer que fosse sobre um eventual assunto capaz de captar as atenções e gerar consensos. Ou polémicas, o que, para alguns, é muito mais divertido e excitante. Nem sequer alguma sugestão bem-intencionada de amigos, como tantas vezes acontece:

— Olha, porque é que não escreves sobre sexo? Isso é que está a dar, pá.

E porque não? Mas não será ainda hoje o dia, pelo que os incautos que tenham resistido até aqui podem dispersar. Não levo a mal, primeiro porque nunca saberei e segundo porque pouco mais há para ver.

Certo é que essa demanda de título tinha-se tornado obsessiva. Como um sapato que a gente não precisa mas quer porque é bonito, embora saibamos que não está à medida do nosso pé, nem das nossas necessidades (neste caso, inexistentes), e muito menos do nosso orçamento. Mas queremo-lo intensamente, e precisamos dele. Mesmo que seja só no espaço ínfimo daquele instante em que passamos diante da sapataria e, imaginando ter pés de princesa, o visualizamos novinho em folha, a fazer escorregar aquela camurça da frente com uma laçada mesmo a calhar. Mero capricho? Talvez.

Enfim, um título pode ser o começo de uma história, a parte mais empolgante, a síntese, o aperitivo para aguçar o apetite, ou ainda, cinicamente, de maneira ironicamente perversa, pode encaminhar-nos para uma ideia oposta ou desviar-nos a atenção do sentido da crónica. O mundo da publicidade e a imprensa, sobretudo um certo tipo de jornalismo que não me compete julgar, usa essa técnica até à exaustão. Nem sempre com má-fé, muitas vezes de boa-fé, aliás, trata-se de um exercício entre o poético e o satírico. Vejamos alguns exemplos:

Japoneses foram eliminados e deixaram o balneário neste estado

Neste título do jornal Record, como se adivinha, a notícia refere-se ao estado de extrema limpeza em que a seleção nipónica deixou o balneário russo durante o Mundial de 2018 e não ao que se entende, porque insinuado, numa primeira leitura.

De García Márquez escolhi estes dois títulos: A Incrível e Triste História de Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada e Ninguém Escreve ao Coronel , um dos seus primeiros romances, com contornos autobiográficos, fortemente inspirado, pelo menos em certas passagens, no que o autor estava realmente a viver num momento em que passava por grandes dificuldades financeiras, como esclarecido pelo próprio.

Ambos representam sínteses bastante claras mas ainda assim deixando espaço para a imaginação do leitor e para suscitar curiosidade, como convém.

Pensando em Sepúlveda, agradam-me particularmente os títulos abaixo. Os primeiros, bastante extensos, constituem claramente resumos explícitos e quase naïfs das histórias que lhes deram origem (ou, pelo contrário, enredos para os quais serviram de gatilho) enquanto que o último é uma alusão poética e etérea ao tema do romance. O Velho que Lia Romances de Amor, História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar e A Sombra do que Fomos.

Perdoem-me por esta passagem mais formal; na verdade não queria transformar este desabafo informe e inclassificável, no sentido neutro do termo, um pequeno texto pessoal coxo e desenquadrado, em uma espécie de ensaio pretensioso. Não é essa a intenção e, com sorte, não será esse o resultado.

Acontece que essa viagem sem tréguas em busca de uma palavra ou de uma pequena sequência delas acabou por deixar-me derreada. Lembrei-me do Ricardo Darín quando, numa cena de O Segredo dos Seus Olhos, encontra, ao acordar, um papelinho arrancado de um bloco-notas onde se lia apenas: "TEMO". Assim mesmo, em letras maiúsculas. Depois repara que o papel tinha um vinco na vertical e, ao desdobrá-lo, descobre uma letra escondida; a palavra já era outra, ou melhor, eram duas palavras com um só sentido: "TE AMO". Espósito (o personagem de Darín) sorri baralhado. E assim ficamos nós também à espera que o próprio tome partido, mas a fronteira é ténue entre temor e amor, pelo menos assim o entendi na altura, e é desta forma que recordo a cena do despertar, para o dia e para a vida, que vi vai para dez anos.

Vendo-me então sem texto nem tema, sem título à vista, rendi-me ao cansaço e decidi mudar de direção, passar a outra tarefa que, embora não me resolvesse o problema, iria sem dúvida deixar-me mais relaxada em relação ao assunto ao qual poderia voltar depois, uma vez que estava a ser completamente improdutiva. A cozinha é um lugar onde acontecem todos os dias pequenos milagres e o estômago tem sempre primazia sobre as questões filosóficas. Foi para lá que fui e ao acocorar-me para sacar de uma panela, veio-me de repente à mente um pensamento automático, uma frase já pronta, tudo aquilo que eu procurava sem saber. Ouvi ressoar claramente no meu cérebro: “Eu quero a panela grande”. Que outro sinal poderia desejar para o meu texto?

A relação é forçada — dirão os mais céticos — o que têm as panelas que ver com crónicas inopinadas?

— Tudo — respondi eu à futura pergunta imaginária — se não fosse a panela grande, estas linhas jamais existiriam. Talvez fosse melhor para todos.

________________________
* O espírito procura mas é o coração que encontra (L'esprit cherche et c'est le cœur qui trouve)

Blogger | Mod. Ourblogtemplates.com (2008) | Adaptado e editado por Flávio Flora (2018)

Voltar