A Viagem

  C106  
Yundi | São Pedro da Aldeia RJ
Duas horas da tarde, horário de pouco movimento e de relativo conforto para viajar de trem, o que me faz decidir tomar um para casa. Tão logo entro no vagão, distraio-me a observar os vendedores ambulantes atravessando apressadamente o corredor livre enquanto anunciam artigos sortidos. O trem diminui a velocidade e abre as portas em uma estação do subúrbio. Ligeiras, mãe e filha adentram o vagão e ocupam assentos próximos. O trem prossegue trajeto… Eis que um ambulante anuncia pipoca doce, embalada em generosos sacos cor-de-rosa. A filha olha para a mãe e esta parece compreender rapidamente sua intenção, a tempo de fazer parar o vendedor que já se afastava.

— É quanto cada saco?

— Dois real – e acrescenta: — Quer dois sacos, dona?

— Um só! – a mãe responde ao abrir a bolsa para apanhar a carteira.

O vendedor de pipoca aguarda.

Do outro lado, no banco defronte ao meu, uma senhora de aparência humilde, abraçada a sua bolsa surrada que parece acompanhá-la há anos observa os passageiros com notável desagrado, e eu quase a adivinho reprovando a viagem vagarosa; o trem sujo; os vendedores barulhentos; a pipoca cara.

A mãe guarda a primeira carteira e depois vasculha outra menor em busca de cédula para pagar o doce…

O vendedor de pipoca aguarda.

Ao lado da filha, um rapaz lê um livro cuja capa, escandalosamente impressa com letras vermelhas, exibe em letras gigantes: CURSO DE ESPANHOL. Ele também se distrai brevemente a olhar para os sacos cor-de-rosa e talvez imagine seu futuro distante onde habla español longe de vendedores ambulantes.

A mão passa a procurar o dinheiro em uma bolsa maior que costuma guardar, diz ela, no fundo da sacola carregada ao ombro.

O vendedor de pipoca aguarda.

Nova parada em outra estação onde entram uma jovem e um idoso. Ela, bem vestida e perfumada, atraindo a atenção de todos. Ele, trajando roupa austera e de bíblia na mão. A jovem perfumada acena ao vendedor de pipoca. Ela compra um dos pacotes cor-de-rosa e misteriosamente mastiga o doce crocante em silêncio. O senhor observa o vendedor de pipoca a suster os pacotes, e com um ar de quem lamenta não mais poder ingerir açúcar, ele abre a bíblia. Neste momento ouvimos:

— Mas onde será que guardei o dinheiro? Está aqui, eu sei. Já encontro – diz a mãe, remexendo o fundo da bolsa maior. Enquanto isso, a filha visivelmente receia que cheguem à estação de destino antes de ela conseguir comer o doce.

O vendedor de pipoca aguarda.

Outro ambulante anuncia um kit completo de manicure por apenas dois reais. Ele exibe o estojo, apresentando uma lixa metálica e experimenta uma tesoura minúscula do kit. Eu me interesso pela lixa de unhas, mas ninguém o chama, nem eu, então ele logo abandona o vagão pelo seguinte…

A mãe não encontra o dinheiro no fundo da bolsa, mas de repente ela se recorda de tê-lo guardado na bolsa da filha! - Dê-me sua bolsa, lembrei onde guardei.

O vendedor de pipoca aguarda.

Uma moça descabelada entra no vagão, pedindo dinheiro – um auxílio para comprar remédios. Ela estende a todos uma receita do SUS, ilegível por estar rota, mas quando nova, acredito que fosse igualmente incompreensível a prescrição pelo que posso discernir à distância. Ninguém parece notá-las: nem moça; nem receita. O vendedor de pipoca lidera a audiência dos ocupantes do vagão. E ele aguarda…

— Achei! Está aqui o dinheiro – Enfim, anuncia a mãe.

— Cinquenta real? Não troco! – Reclama o vendedor de pipoca.

— Não são cinquenta reais, olhe: é uma nota de vinte reais, veja…

— Mesmo assim, não troco. Dona, eu só vendi três sacos hoje… Só tem inteiro?

— Só estes vinte reais. Volta dezoito.

A filha aprecia os sacos de doce, a jovem perfumada mastiga a última pipoca do pacote, os outros passageiros saboreiam a cena, e eu decido comprar um saco cor-de-rosa com uma cédula de dois reais.

O vendedor de pipoca ajeita cuidadosamente o saco maior com os pacotes cor-de-rosa dentro, olha para a nota graúda da dona, recusa a venda, suspira ao ver que não há novos passageiros na estação seguinte, avista o outro vagão adiante, equilibra-se no marear do trem e parte. Pouco antes de descer do trem, em um gesto rápido, eu entrego o meu pacote à jovem, filha de uma mãe sem troco.

O trem parte, eu caminho pela plataforma da estação e vejo uma criança oferecer três jujubas por dois reais, ouço um homem pedir ajuda para comprar leite para os filhos, fito os trilhos adiante, e a viagem continua...

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